Nos últimos tempos chegaram a mim, de maneira direta e indireta, perguntas a respeito de autores que gostariam de saber como seus textos, sites, blogs, canais do Youtube e suas análises de HQs estavam sendo recebidos e no que poderiam melhorar. Como nem todas as pessoas acabam tendo acesso a um ensino formal ou sistematizado sobre Crítica, decidi fazer este guia com algumas dicas que aprendi com outras pessoas, através de pesquisas e da prática da Crítica em quase uma década. Apesar deste texto ser direcionado para uma crítica de histórias em quadrinhos, seus princípios gerais valem para a crítica de obras das mais diferentes linguagens.

Vale-se ter em mente que a Crítica de Arte e a Crítica Literária são disciplinas já com alguns séculos de tradição. O que resulta na existência de um conhecimento acumulado através de estudos, experiências e tentativas e erros, possuindo várias linhagens, estilos e metodologias. Quanto mais dessa tradição o crítico conhecer, mais métodos e “caminhos” para se fazer uma crítica estarão à sua disposição. O que apresento aqui são alguns possíveis caminhos de se trilhar.

É importante entender a diferença de uma crítica e de um review ou resenha. O review ou resenha trata-se mais de um resumo de uma obra, que pode incluir ou não um juízo de valor ou uma recomendação se ela vale a pena ser “consumida”. Já a crítica possuiu alguns requisitos específicos. Mônica Zielinsky, uma das mais respeitadas críticas de arte do Rio Grande do Sul e de quem tive a sorte de ser aluno, costuma dizer para seus alunos que “criticar é colocar em crise”, e este é um dos elementos básicos para uma boa crítica. A crítica tem de apresentar um problema, e isto nos leva a um dos critérios para se valorar uma crítica: se a crítica é confortável é porque ela não é uma crítica. Com “colocar em crise” ou “levantar um problema” não significa que ela precisa atacar a obra ou o autor, mas que ela tem de trazer um assunto para ser discutido. Essas afirmações trazem vários pontos que precisam ser melhor desenvolvidos, então tentarei separá-los para abordar de forma individual.

O primeiro ponto é sobre qual é a função da crítica e do crítico. O objetivo da crítica é aproximar o público de uma obra, ajudando este público/leitor/observador a se relacionar com a obra de uma maneira em que não conseguiria, ou teria mais dificuldades, para realizar sozinho. Ou seja, a função do crítico é indicar caminhos, fazer conexões e ajudar o leitor a perceber elementos relevantes e interessantes na obra. Assim, uma boa crítica pode, e é até recomendável, partir ou conter as informações de uma obra, como a data de publicação original, em que veículo foi publicada originalmente, o local de origem, as informações sobre o autor. Tudo isso ajuda o leitor a contextualizar a obra, mas informação só se torna conhecimento quando se estabelece com ela conexões com outras informações e é empregada nas práticas do cotidiano. Assim, o crítico deve se ver como um motorista que dirige um ônibus turístico levando seus leitores aos pontos mais marcantes da obra e contextualizando-os para que, a partir daí, os leitores estejam mais instrumentalizados para realizar explorações por si próprios.

Mas voltando à crítica como o que “coloca em crise”, este é um dos elementos mais importantes de sua constituição. A crítica necessita levantar um problema, uma dúvida, uma questão. Que não precisa necessariamente ser respondida por ela, mas que sirva para desencadear no leitor uma reflexão ou o leve a uma perspectiva nova sobre a obra. A crítica eficiente é aquela que faz com que o leitor veja na obra algo que ele ainda não havia visto. Assim, o melhor método em uma crítica é que ela contenha uma discussão a partir da obra. Ou seja, que ela explicite um ou mais dos assuntos tratados pelo autor na obra e, a partir dele, seja levantado como tal assunto, tema ou discussão se aplica ou tem efeitos fora da obra. Por “fora da obra”, trato de um contexto social, histórico, filosófico, político, comportamental, cotidiano. Qualquer um dos âmbitos da vida dos sujeitos que podem ser melhor compreendidos ou abordados de uma forma diferente a partir da perspectiva contida na obra. Tal discussão pode, inclusive, levar a abordagens da própria história ou prática da linguagem na qual a obra foi produzida. Como, por exemplo, usar uma história em quadrinhos para, a partir de suas características, discutir a história das histórias em quadrinhos ou os diferentes métodos de produzir e se relacionar com os Quadrinhos. A “crise” que a crítica deve gerar não é uma crise da obra ou uma crise do autor, mas principalmente uma crise no modo como o leitor vê e se relaciona com a obra criticada e com o mundo à sua volta. Quando o leitor é tirado de seu lugar de conforto pela crítica e passa a se relacionar de uma nova forma com a obra que até então não havia estabelecido, é sinal de que a crítica teve sua função primária atingida.

Outro fator que tento sempre trazer à tona em falas e aulas é a existência de uma marcante diferença entre se gostar de uma obra e considerar ela como sendo boa. Gostar de uma obra está relacionado a estabelecer um vínculo com esta obra, ver nela gostos e características pessoais e, com isto, identificar-se com ela. Já considerar uma obra boa está relacionado a identificar nesta obra certa relevância para o desenvolvimento da linguagem a qual faz parte, que ela aborda de maneira satisfatória uma determinada proposta temática ou estética ao qual se propôs ou que consegue desenvolver algum tema relevante para o contexto cultural de sua época. Dessa forma, é completamente normal, e necessário para um crítico, entender que uma pessoa possa reconhecer o mérito de uma obra sabendo que ela foi bem executada, mesmo sem se identificar com ela por seu gosto pessoal ser diferente daquela usado na realização da obra. Ou ainda, gostar de uma obra e se identificar com ela mesmo sabendo que foi mal feita e não possui grandes qualidades artísticas ou relevância para a história e tradição do meio. Ou seja, o crítico precisa entender que e seu gosto pessoal não está diretamente vinculado à existência ou não de méritos em uma obra, e que sua repulsa por uma produção específica não significa que não possa reconhecer sua importância. Por exemplo, eu posso não gostar e não sentir nenhum tipo de afinidade com o estilo Rococó e assumir isto publicamente e, ao mesmo tempo, defender que o quatro O Balanço de Jean-Honoré Fragonard (1732-1806) é uma boa pintura por ser executada de maneira extremamente competente dentro das convenções deste estilo.

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Jean-Honoré Fragonard (1732-1806), O Balanço, 1766

Até aqui tratei de algumas linhas mais conceituais para direcionar uma crítica, mas o quesito de gosto pode ser o primeiro ponto de algumas sugestões mais práticas para se fazer uma crítica. Na verdade, a opinião de gosto sobre uma obra não é um ponto essencial em uma crítica. Eu recomendaria, inclusive, evitá-la se possível. Caberia ao crítico menos julgar se uma obra é boa ou não para o público, e mais apresentar ou destacar elementos que considera relevante nela para, a partir deles, permitir ao leitor fazer seu próprio juízo de valor e, caso o gosto pessoal do leitor e do crítico apresentem grandes contrastes, este não se sinta ofendido, uma vez que, como citado no parágrafo anterior, a valoração de uma obra como boa ou ruim está relacionada com critérios mais gerais de contexto e execução, e o gosto mais relacionado com um reconhecimento de si próprio em uma obra. Uma crítica centrada em julgamento de gosto não só faz com que ela perca uma objetividade mais técnica de análise e crie um distanciamento e desconfiança do leitor que tem um gosto diverso para com o crítico, como não é necessária porque a valoração de gosto do crítico acaba se manifestando indiretamente na crítica através do tipo de análise que realiza, de quais elementos da obra ele escolhe para analisar, de como essa análise é desenvolvida e até mesmo de a qual a crítica se refere. Muito provavelmente o crítico não faria a crítica de uma obra a menos que acredite que ela tenha alguma relevância para ser criticada, e por si só isto já acaba sendo uma demonstração de gosto.

Caso o crítico considere essencial para seu modelo de crítica apresentar uma valoração da obra, como dar um conceito dentro de um sistema de classificação ou nota, mais importante do que a nota em si é que o crítico deixe claro para seu leitor quais os critérios que está usando para fazer esta valoração. Uma mesma história em quadrinhos pode receber notas bem diferentes quando julgada tendo como critério o quanto sua narrativa se enquadra dentro dos preceitos aristotélicos de desenvolvimento de roteiro em um sistema de três atos ou se avaliada a partir do uso do quanto possui uma colorização inovadora, por exemplo. O leitor só vai poder se relacionar com a avaliação e se identificar com ele se o crítico for honesto em apresentar quais são seus critérios e métodos de julgamento.

É recomendável, ainda, evitar um uso de adjetivos vazios desnecessário, como repetir que a obra é “maravilhosa”, “incrível”, “fantástica” e não abordar o que nela justifica tal caracterização. Bem como o inverso, que é desqualificar a obra sem contexto. O mais recomendado é evitar o uso de adjetivos gratuitos não fundamentados, pois eles sozinhos perdem força e significado. Ao invés disso, é melhor construir um discurso explicativo sobre as características boas ou ruins da obra, podendo aí o crítico ressaltar os méritos e fracassos dela, e deixar ao leitor construir tal conclusão.

Ainda, uma clássica falha de retórica que tem sido comum na internet é o uso de uma argumentação ad hominem (contra a pessoa), aquela que, diante de um discurso ou opinião contrária, ao invés de abordar os argumentos que formam tal discursos ou opinião, tentam deslegitimar a pessoa que a manifestou. Entretanto isso é uma falha lógica, acusar uma pessoa de ser incompetente ou torturadora de pandas, mesmo que seja verdade, não significa necessariamente que uma afirmação que ela tenha feito em um contexto específico não seja verdadeira. Na crítica é necessário evitar uma retórica similar, ao que podemos chamar de ad apus (contra a obra). Afirmar que uma obra é “horrível” ou “lixo” é uma falácia argumentativa que faz com que o leitor perca a confiança no crítico. Caso o crítico considere relevante demonstrar a existência de falhas graves em uma obra, o melhor desenvolvimento é apontar os casos específicos em que elas acontecem e explicar o motivo delas serem relevantes de ser destacadas.

Também é necessária uma honestidade quando às possíveis questões controversas relacionadas à obra. Caso existam versões conflitantes ou antagônicas a respeito de uma argumentação, o mais indicado para uma boa crítica é que sejam apresentados os diferentes lados e versões da história. Mesmo que o crítico tenda a concordar com uma delas, ele não estaria ajudando o leitor a conhecer e entender melhor a obra e seu contexto se argumentasse apenas a sua versão favorita e citasse as versões divergentes dizendo que elas não são relevantes. O crítico pode, inclusive, tomar partido a favor de uma das versões, mas, se for o caso, ele deve ser sincero com o seu público e assumir qual das versões ele favorece e apresentar também os argumentos divergentes para, ao invés de decidir pelo leitor qual posição ele deve tomar, entregar a este leitor os elementos conhecidos e permitir a ele tomar por si próprio uma decisão. Lembrando que o crítico é o motorista que guia, mas é ao passageiro que cabe decidir o destino onde desembarcar.

Usar termos mais pontuais e específicos também ajudam na precisão e clareza da crítica. Por exemplo, em uma ocasião, alguns pesquisadores de quadrinhos há menos tempo na área me perguntaram o que significava o conceito “traço” que era usado comumente em textos pela internet, mas que estavam com dificuldade de entender exatamente do que se tratava ou de achar o termo equivalente em textos teóricos em outros idiomas. O termo “traço” em uma desenho, literalmente, tem como significado o risco da linha. O traço pode ser fino ou largo, reto, curvo, firme, trêmulo. Entretanto a palavra aprece em vários textos usada de maneira vaga, muitas vezes como algo próximo a um sinônimo não muito consciente para outro conceito, o de “estilo”. Já “estilo” é um conjunto de características formais ou códigos linguísticos utilizados por um autor ou compartilhados por um grupo de autores para representar algo que existe no mundo real ou como conceito abstrato através da linguagem que o artista utiliza. Lembrando que a representação é sempre um fenômeno que parte de uma ausência, uma forma de se referir a algo que não está ali, como o desenho de um urso para se referir a um urso que de fato não está no local em que o desenho do urso se encontra. Já o estilo trata-se do conjunto de regras utilizado pelo autor para representar ursos, animais ou personagens em geral —  que no mundo real são seres vivos tridimensionais — através de linhas e manchas sobre uma superfície bidimensional. Muitas das vezes em que lemos algo como “gosto do traço de tal artista”, o autor da frase está se referindo não ao traço — a forma como ele desenha uma linha —, mas ao estilo deste artista — o sistema de códigos que ele desenvolveu ou se apropriou para transformar conceitos de elementos tridimensionais em formas sobre o papel. Quanto mais específica é a linguagem que usamos para a análise, mais específica e complexa pode ser a análise feita e mais diretamente e pontual é a comunicação com nossos leitores.

O objetivo deste texto era apresentar algumas dicas para a realização de críticas de obras de Quadrinhos e outras linguagens, mas de forma alguma trata-se de uma lista fechada. Existem outros métodos e modelos de se fazer uma crítica, entretanto o núcleo essencial da crítica é o ato de tentar auxiliar o leitor a conseguir, através da obra, atingir uma crise que o leva a uma nova perspectiva, seja qual e sobre o que for. Se a crítica conseguir atingir tal objetivo, se ela conseguir usar uma HQ para abordar a Vida, então ela cumpriu seu papel como crítica.

Crítica em vídeo:
Algumas considerações sobre a crítica de Quadrinhos

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9 comentários em “Pequeno Guia para A Crítica de Quadrinhos (e outras mídias)

  1. Bem, legal! Algumas coisas acho que estou fazendo certo, mas o uso do “traço”, realmente é um vício da “crítica” de quadrinhos… Da minha também! Abraços! =) Valeu! 😉

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  2. Ótimo texto. Talvez eu não concorde com a parte de ser motorista dos outros, mas pode ser meu senso de inferioridade falando mais alto – o crítico tem que ter responsabilidade, afinal, e dá pra pensar essa responsabilidade como mãos sérias no volante.
    De qualquer maneira, sugiro fazer uma versão tl;dr do texto, ou for dummies.

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  3. Parabéns pelo texto! Está cada vez mais raro encontrar críticas de produtos da cultura de quadrinhos, filmes e animes que sejam racionais, objetivas e intelectualmente honestas; ao invés disso, o mais comum é encontrar resenhas ideologicamente enviesadas e exploração de temas polêmicos para ganhar visualizações. Por isso, é muito bom encontrar alguém que apresente um guia que recomende a honestidade, a apresentação das premissas adotadas na análise e o favorecimento de uma postura de humildade e desejo de compreender melhor a obra em questão.

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    1. Obrigado! A proposta é contribuir da maneira que for possível para dar uma qualificada na crítica de quadrinhos produzida no Brasil. E um dos problemas é que o conhecimento mais técnico sobre crítica de arte não é tão acessível quando deveria ser.

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  4. Ótimo texto! Eu colaboro numa revista de games retro chamada OldBits. A proposta é comentar jogos fora do mainstream que faziam sucesso nas locadoras e não eram abordados por revistas especializadas da época. Não são poucas as vezes em que encontramos um “crítico” de games detonando (no sentido pejorativo, literal) um jogo sem qualquer justificativa. Não raro eu testo o jogo só por desconfiança e acabo tendo uma percepção diferente. Ainda me faltam critérios para uma crítica mais honesta, mas de todo modo o seu texto me ajudou bastante quanto a encontrar uma direção. Obrigado por compartilhar seu conhecimento.

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