Darling in the FRANXX (ダーリン・イン・ザ・フランキス) é uma série de animação com vinte e quarto episódios dirigida por Nishigori Atsushi e exibida originalmente de 13 de janeiro a 7 de julho de 2018. Existe ainda uma adaptação em quadrinhos da série iniciada em 14 de janeiro de 2018 na revista Shounen Jump+, com uma versão encadernada formato wide-ban em oito volumes, com roteiros do mesmo coletivo responsável pela animação, que assina como Code 000, e ilustrada por Yabuki Kentarou (1980–). Há ainda uma segunda série em quadrinhos de autoria de mato publicada entre 14 de janeiro a 11 de julho de 2018 também na Shounen Jump+ intitulada Darling in the FRANXX! com temática humorística e encadernada em formato wide-ban em volume único.
Antes de tratarmos propriamente da obra, há alguns requisitos necessários de se ter em mente. Um deles é o sistema de referências presente na arte japonesa. Desde o período da literatura clássica japonesa existe a tradição de que uma obra artística deve, necessariamente, citar uma obra anterior já legitimada. Tal costume tem ralação com o fato de que os nobres burocratas que governavam o Japão antes da ascensão da classe samurai no século XII admiravam a cultura chinesa como sendo ela o grande modelo cultural a ser seguido. Assim, a produção artística Japonesa, seja literária ou plástica, pelo menos desde o século VII tentava reproduzir as convenções formais e temáticas da arte chinesa e as invocava tentando se constituir como uma continuidade dela. Além disso, a tradição da poesia japonesa, com o estabelecimento de categorias derivadas da poesia de estilo waka, como o renga e o haikai, que se valiam de versos curtos no formato de três linhas como cinco, sete e cinco sílabas cada, fazia com que fosse necessário passar o conteúdo ou tema da obra em pouco espaço. Para isso, foi estabelecido uma convenção de fazer pequenas citações a obras anteriores, invocando todo o contexto da obra anterior já conhecida pelo público, e acrescentando o novo desenvolvimento. Um exemplo seria o da existência de um poema clássico em que, na solidão de sua cabana no inverno, a personagem observa um veado também sozinho na neve bramindo. Sendo tal poema conhecido como um exemplo de representação da solidão, a partir daí, bastava que os autores posteriores citassem “um veado bramindo” para que tal expressão fosse entendida como um código para solidão. Desse forma, todo um imaginário de citações a plantas, animais, objetos e estações tornou-se, a partir de textos anteriores já difundidos e consagrados, códigos para contextos emocionais, sociais ou históricos sem que os autores precisassem citar diretamente tais contextos. Algumas produções do período clássico japonês eram tão determinadas pelo sistema de citação que eram cópias quase idênticas de poemas anteriores com a substituição de apenas uma ou duas palavras que davam um novo desenvolvimento para o contexto da versão original.

Assim, uma obra artística citar outra obra era uma condição imperativa, tanto para que a obra se tornasse funcional, como uma forma de a legitimar assumindo a condição de continuidade de uma obra já consagrada. Quando um autor cita uma obra anterior, ele, ao mesmo tempo, homenageia os autores pelo qual tem respeito e considera relevantes, como indica ao leitor quais são suas influências artísticas, a quais tradições estilísticas e temáticas pretende fazer parte e se filiar como uma continuidade ou descendência dos autores citados e da tradição artística que representam. Tal costume continua presente em toda a produção cultural japonesa, como na Literatura, Pintura, Escultura e Música, e inclusive em linguagens mais recentes, como a História em Quadrinhos, Animação e Videogame.
Quanto a Darling in the FRANXX, a obra se coloca como descendência da série animada Neon Genesis Evangelion¸ criada por Anno Hideaki (1960–), produzida pelo estúdio Gainax e exibida originalmente entre 1995 e 1996. Tal relação de continuidade é tão direta, que Nishigori trabalhou no Gainax, fazendo parte das equipes envolvidas nos longas de Neon Genesis Evangelion e em outra produção do estúdio que trata de temas próximos, Tengen Toppa Gurren Lagann de 2007. Neon Genesis Evangelion, por sua vez, coloca-se como continuidade de várias tradições, entre elas o gênero Mecha, as questões sobre definição do sujeito vindas da literatura Cyberpunk, o fantástico das narrativas folclóricas presentes nas histórias em quadrinhos de Morohoshi Daijiro (1949–) e as relações de conflitos entre as figuras de pai e filho vindas da obra de Franz Kafka (1883–1924). Essa última característica é um determinante importante em Neon Genesis Evangelion, uma vez que todos os personagens centrais da obra são definidos por suas incapacidade de lidarem com suas figuras paternas e relações familiares, e esta discussão é retomada e possui grande importância na estrutura narrativa de Darling in the FRANXX.
Pensando nessa relação de continuidade com a discussão do tema da formação do sujeito pelo conflito com a figura paterna presente em Neon Genesis Evangelion e na estrutura narrativa de Darling in the FRANXX, podemos compreender a série segundo uma estrutura de três atos, que serão abordados a seguir.
Ato 1 – Jardim do Eden: inocência e pós-historicismo sob a proteção dos pais

A trama parte da premissa de um grupo de adolescentes vivendo no Plantation 13, uma cidade murada móvel de alta tecnologia. Essas crianças, a princípio nomeadas apenas por números códigos de três dígitos, são desde cedo selecionadas e preparadas para ter como único objetivo de vida pilotar os FRANXX, mecanismos tecnológicos gigantes, para proteger sua Plantation de criaturas chamadas Kyouryuu (“叫竜”, cuja tradução dos kanji seria algo como “dragão gritador” e que tem a mesma pronuncia da palavra “恐竜”, cuja tradução é “dinossauro” ou, literalmente, ”dragão terrível”). Os FRANXX só podem ser operados por casais de pilotos que precisam possuir boa compatibilidade entre si e estabelecer certo grau de sincronia emocional. O drama do protagonista da série, Hiro/016, é não possuir compatibilidade com nenhuma parceira disponível, tornando-se incapaz de pilotar, até a chegada de Zero Two/002, uma garota não completamente humana, exímia piloto, conhecida por levar seus parceiros pilotos à morte por não conseguirem acompanhá-la no processo de sincronia. A trama se desenvolve nos seis primeiros episódios da série a partir das relações entre os personagens, seus desenvolvimentos emocionais e as expectativas que têm em relação aos outros, a si próprios e à função que exercem em sua sociedade como pilotos de FRANXX chamados de parasites.

Várias aproximações podem ser estabelecidas entre Draling in the FRANXX e Neon Genesis Evangelion, como em relação à iconografia, aos conceitos de pilotagem dos mecha, entre outros. Um dos pontos interessantes é que Neon Genesis Evangelion se encerra em um contexto pós-apocalíptico, enquanto Darling in the FRANXX se inicia nele. Para adentramos nesse ponto faz-se necessário adentrar no conceito de Pós-Apocalíptico. O Apocalíptico seria um modelo de se relacionar e interpretar o tempo a partir do iminente fim desta própria relação. Na cultura contemporânea há a tradição de compreender o tempo a partir de uma lógica historicistas, ou seja, da existência de um fator que permite que vários eventos e processos ocorridos conforme a passagem do tempo vão se acumulando e associando provocando uma interferência que defini como os modelos futuros da sociedade se estabelecerão. A interpretação historicista do tempo é entender a existência de um passado, buscar reconstruir conceitualmente este passado para entendê-lo e, a partir dele, entender o presente e projetar ou prever a existência de uma condição futura. Já a percepção apocalíptica do tempo é a existência no limiar final do processo historicista, é entender a existência de um presente que foi definido por um passado, mas não tendo perspectiva de um futuro. O Apocalipse é a concepção de tempo presente na iminência do fim da História.
Já o Pós-Apocalíptico pode ser entendido como um contexto pós-histórico, ou seja, após a perda da História. O contexto pós-apocalíptico se dá quando os sujeitos perdem a noção de seu contexto histórico, não conhecem sua origem, não sabem como chegaram à situação social, cultural, moral em que se encontram. Ao não ter conhecimento algum sobre seu passado, o sujeito falha ao ter conhecimento de si próprio, pois não entende as forças e os processos que o definiram a ser o que são.
No ato inicial de Darling in the FRANXX, a série é triplamente pós-apocalíptica. Primeiro pelo contexto geral da sociedade apresentada na trama. A narrativa dá algumas informações que levam a entender que o Plantation 13 é um de vários Plantations existentes e que todos têm estruturas físicas e sociais padronizadas e são submissos a uma mesma hierarquia de liderança. Os Plantations, apesar de parecerem grandes cidades tecnológicas autossuficientes e com ecossistemas próprios, não são autônomos. Eles vagam à procura de fontes de energia subterrâneas em um mundo desolado. Fora dos Plantations, há apenas uma terra arrasada, inóspita na qual apenas os kyouryuu parecem conseguir sobreviver, e mesmo eles são atraídos pelos Plantations. O mundo pelo qual os Plantations se deslocam é um mundo pós-apocalíptico, pois é um mundo no qual não há resquícios de ter tido um passado, sem memória, só com um grande vazio pós-histórico.
Segundo, porque o espectador tem uma percepção pós-histórica da narrativa. Não são dadas informações do contexto da diegese, sobre que mundo é aquele, se a narrativa se passa na Terra conhecida, como o mundo externo ficou devastado, como a sociedade apresentada foi formada, quem a administra, da onde vieram as crianças protagonistas ou o que são os kyouryuu. O espectador é jogado dentro de uma diegese complexa, que não tenta emular o modelo de estrutura da sociedade atual e nem de nenhuma que já houvera existido, nem oferece elemento algum para compor tal cenário.
Terceiro, porque mesmos os personagens não têm acesso ao seu próprio contexto histórico. Os parasites não sabem quem são seu pais ou como nasceram, não sabem nada a respeito da história do mundo em que vivem e nem sobre o funcionamento de seu Plantation. Eles vivem exclusivamente para pilotar seus FRANXX e, dentro de sua sociedade, não são nem ao menos tratados como sujeitos. Nesse primeiro ato alguns parasites mencionam o fato de terem passado o início da vida em uma instalação em que as crianças eram criadas em conjunto com o objetivo de se tornarem parasites ao qual é chamado de Garden (Jardim). Ainda, os parasites masculinos são formalmente identificados como stamen, e as femininas, como pistil, termos usados na Botânica para identificar, respectivamente, os órgãos reprodutivos masculinos e femininos das flores. Durante a narrativa, os parasites passam o tempo em que não estão dedicados a atividades de combate em Mistilteinn, uma instalação no centro de um micro ecossistema controlado localizado em uma estufa sem ter acesso ou ao menos conhecer aos demais setores e funções do seu Plantation. Ainda, o termo “plantation” descreve um sistema de produção econômica focado na produção agrícola de monocultura destinado a produzir o máximo possível de matéria-prima sem se importar com os efeitos colaterais provocados no local de produção e enviar estes recursos para uma metrópole que se beneficia deste modelo de extrativismo sem comprometer seu próprio desenvolvimento cultural ou explorar sua mão de obra. Há toda uma série de contextos que indicam que os parasites naquela sociedade não são considerados cidadãos ou sujeitos portadores de autonomia, mas sim são vistos como formas de vida sem autodeterminação e que são produzidas e cultivadas como recurso fungível para sustentar aquela sociedade. Ou seja, os parasites possuem uma posição social análoga à de vegetais, o que é representado como alegoria no fato de os FRANXX pilotados por eles serem batizados com nomes de plantas.

Os parasites vivem em um ambiente controlado em que recebem mantimentos de maneira automatizada tendo o mínimo contato com outros indivíduos do Plantation. Seus raros contatos com os adultos — em um contexto em que “adulto” é mais do que um estágio de desenvolvimento dos indivíduos, mas ganha um peso de status ou classe de distinção social — dão-se em cerimônias formais com pompa militar através das quais são exibidos a plateias de adultos que os aplaudem pelo seu esforço nas atividades militares. Como em um Jardim do Eden, os adolescentes do Plantation existem alienados de qualquer conhecimento social que vá além daqueles intrinsecamente necessários para praticarem suas funções militares, e, sem este conhecimento, habitam um estado de inocência em que idealizam todas as suas relações com suas funções como parasites e com os adultos. Como crianças em seus primeiros estágios de formação, seu propósito de existência é executar as tarefas designadas pelas figuras de referência e sentirem-se realizadas como sujeitos ao receberem elogios e reconhecimentos destas figuras. O personagem Zorome/666 reafirma várias vezes seu orgulho ao ser aplaudido pela multidão de adultos na plateia, sua necessidade de ser reconhecido pelos adultos e seu sonho de um dia conhecer um adulto de perto e crescer para se tornar um deles. No caso dos parasites, essa figura de referência se dá na forma do Papa (Papai), a face visível do Lamarck Club, o conselho da instituição que governa à distância todos os Plantations de maneira autocrática conhecida como APE, que veneram como uma figura paterna idealizada ao qual almejam atender todas as expectativas para assim serem reconhecidos e sentirem-se valorizados. Entretanto a APE, formada por indivíduos com rostos ocultos por máscaras que lembram faces de símios e que são concebidos como uma referência à SEELE de Neon Genesis Evangelion, é mostrada como única instância que talvez possua algum entendimento do contexto histórico da diegese e em seu núcleo refere-se aos parasites como se estes fossem instrumentos ou recursos disponíveis e substituíveis para o desenvolvimento dos Plantations.
Nesse primeiro momento, todo o desenvolvimento da narrativa em si se dá em um contexto de inocência alienada, em que os adolescentes constroem sua autoimagem e suas expectativas a partir de sua capacidade de ser um instrumento útil na realização dos objetivos da figura paterna que idolatram e da qual receber o reconhecimento lhes traria a sensação de fazerem parte de sua sociedade. Eles não vivem por ambições ou objetivos próprios, ou melhor, sua ambição ou objetivo é integrar a sociedade da qual fazem parte confundindo o conceito de sociedade com o da vontade do pátrio poder a qual se submetem sem conceber um modelo de organização social no qual possam estar em outra posição ou estabelecer outras formas de relação.
Podemos, a partir daí, estabelecer outra conexão com Neon Genesis Evangelion, na forma como o personagem Ikari Shinji é uma figura apática sem autonomia como sujeito e que, para se sentir parte de sua sociedade ou construir algo que substitua uma relação familiar ausente, sujeita-se a qualquer ordem ou comando de qualquer indivíduo em uma posição minimamente de autoridade. Tal condição fica mais exposta quando Shinji sujeita-se às ordens para atuar como piloto militar, contra sua inclinação natural, por Ikari Gendoh, o pai que o abandonou e expressa claramente que seu interesse no filho se dá apenas na medida em que ele possa ser útil como instrumento para satisfazer os deveres de sua função. Shinji prefere aceitar a situação de abuso e indiferença, desde que isto lhe dê uma aproximação mínima do que seria uma estrutura familiar e um conjunto de regras e objetivos claros que ele possa simplesmente seguir, tendo um propósito claro e lógico para sua existência sem precisar tomar decisões por si próprio. Os parasites de Darling in the FRANXX a princípio herdam de Ikari Shinji esse papel de jovem submisso que encontra na obediência às instituições e hierarquias um alívio de suas angustias em um propósito de existência.
Ato 2 – Reconstrução da Memória: busca da autoimagem a partir do entendimento de seu contexto histórico
O segundo ato da série, do episódio 7 ao 18, desenvolve-se ao redor de duas questões feitas por Kokoro/556 e Hiro/016, respectivamente: “da onde nós viemos?” e “quem eu sou?”. Nesse segundo momento narrativo, a série aborda como os parasites passam a compreender a si próprios a partir de buscar em suas memórias fatos que contribuíram para definir suas personalidades. A narrativa vai, dentro de um processo em que os personagens visitam seus passados através de suas memórias, construindo uma perspectiva histórica de cada uma deles. Assim, os parasites, entendendo os fenômenos que os moldaram, passam a compreender seus próprios comportamentos e posturas no presente. Eles constroem seu lugar no mundo ao conseguirem definir suas personalidades não apenas através de sua função como parasites, mas definindo quais são suas metas e expectativas próprias além daquelas determinadas pelo Papa e, neste processo, deixam de ser “vegetais” para assumir a função de sujeitos, tornando-se agentes capazes de identificar e gerenciar suas próprias vontades. Goro/056 passa por esse processo ao compreender como sua relação com Ichigo/015 e Hiro/016 definiram sua personalidade e sentimentos. Mitsuru/326 percebe a existência de sua incapacidade de se relacionar com os demais a partir de atingir a compreensão de que tal fenômeno se dá como um mecanismo de defesa que o protege de sofrer uma nova ferida emocional como a que sofreu no passado. Zero Two/002 externaliza a motivação para seu comportamento vinda de uma obsessão gerada na infância por alcançar um estado de humanidade da qual se considera excluída. Os personagens passam a entender suas autoimagens como sujeitos não apenas através das funções que lhes foram atribuídas naquela sociedade, mas ao perceberem-se donos de uma personalidade própria, individual e autônoma.

Nesse sentido, os parasites do Plantation 13 deixam de estar em um contexto pessoal pós-histórico, pois passam a entender-se como portadores de um passado próprio e único. Sua existência deixa de ser pós-apocalíptica e, diante da existência de um passado, do qual o acumulo de experiências construiu seu presente, e de expectativas próprias, passam a entender também a possibilidade de existência de um futuro com potencial mutável, e não um que seja estático e preso em um eterno presente definido pela repetição infinita da execução de suas tarefas em função dos ditames paternos.
Ao mesmo tempo, a narrativa conduz o espectador a uma ameaça de sua condição pós-apocalíptica ao dar indícios de que seu universo diegético também possui um passado e uma noção, ainda oculta, de uma História. Isso acontece ao ser apresentada a existência de ruínas desabitadas do que lembra ser uma cidade contemporânea existindo fora dos Plantations, na revelação de que os parasites seriam resquícios de um modo de vida existente no passado e dos indícios de que o Lamarck Club possui informações que não compartilha sobre a condição humana anterior à APE.
Já Hiro/016 é o que mais sente o impacto de sua contextualização histórica. No início da narrativa, era o único parasite do Plantation 13 que sentia-se deslocado, sem uma utilidade para os adultos e o Papa e, portanto, sem uma função social e um propósito para existir. Ao percorrer sua jornada pelas próprias memórias, descobre que fora o mais afetado pela condição pós-apocalíptica, pois tivera memórias de eventos emocionais chaves de sua infância apagadas, tendo sido roubado de si a possibilidade de reconstruir estes processos e entender a si próprio como o sujeito que se tornou. A narrativa de Hiro/016 como uma criança de perguntas insaciáveis aos adultos e que não apenas criou um nome para si próprio, como nomeou as demais crianças que viviam com ele no Garden, subvertendo a determinação de impessoalidade e uniformidade no tratamento dos futuros parasites em potencial exemplificada por suas designações apenas como números de série, é a alegoria paradigmática para essa busca inerente do personagem por construir uma noção de si e dos outros que estavam na mesma condição como sujeitos.

Apenas ao recuperar suas memórias perdidas é que Hiro/016 torna-se seguro sobre possuir uma posição social que lhe pertence e que sua condição como sujeito não se define pela sua função social como parasite, mas pelas expectativas que tem em relação ao futuro. A narrativa posiciona os personagens dentro de seu desenvolvimento histórico pessoal dando a eles uma consciência de passado que lhes permite compreender seu presente e projetar a existência um futuro em que não existem apenas em função da missão para a qual foram moldados desde o nascimento a executar em nome da figura paterna ausente. Ao mesmo tempo, dá ao espectador uma sensação de que a diegese não se passa mais em um mundo completamente desconexo da cultura contemporânea da Terra, mas sim que ele, de alguma forma, possui conexões com o mundo conhecido do presente, não existindo em um pós-apocalipse, mas dentro de uma continuidade histórica, mesmo que desconhecida.

Ato 3 – Contra A Vitória de Gendoh: autoafirmação de individualidade e da filiação a partir da negação do discurso do pai
No episódio 18, ao passarem semanas abandonados sem a gerência direta dos adultos e sem participar de batalhas, apenas se organizando para sobreviverem por conta própria, os personagens pela primeira vez podem viver de fato sem ter suas vidas definidas pela sua função como parasites¸ e conseguem projetar a existência de um futuro possível no qual ela não os determina. E o auge dessa visão otimista da possibilidade de construírem um futuro segundo suas próprias expectativas se manifesta na cena do casamento.
O episódio 19 estabelece duas grandes rupturas. A primeira ruptura ocorre diante do fato do episódio ser dedicado a, pele perspectiva do Dr. Werner Frank, acompanhar como a sociedade humana contemporânea e a Terra se desenvolveram até se tornarem aquelas habitadas pelos personagens. Como isso, alterando a forma de percepção da narrativa e compreensão da diegese ao deixar de representar um contexto desassociado do tempo e espaço natural conhecido pelo espectador e se restabelece como uma continuidade hipotética do presente real. Ainda, permite estabelecer várias conexões com Neon Genesis Evangelion, como a revelação dos FRANXX não se tratarem de robôs tripuláveis, mas serem mecanismos biomecânicos criados a partir da duplicação da estrutura do primeiro kyouryuu capturado, como os EVAs são simulacros do primeiro shito capturado, ou como o Dr. Frank perdeu sua esposa como consequência do desenvolvimento dos FRANXX da mesma forma como Ikari Gendoh perdeu sua esposa, Ikari Yui, no desenvolvimento de seus EVAs, e, ainda, como o Dr. Frank criou Zero Two/002 como uma duplicata da figura por quem era apaixonado, a Princesa Kyouryuu, em um tentativa de se aproximar dela, em consonância com Ikari Gendoh ao criar Ayanami Rei como uma duplicata de sua esposa como ferramenta para atingir uma forma de acessar Yui mesmo em sua morte. Inclusive, o nome da piloto do EVA-00 Proto Type, “Rei”, deriva de uma pronúncia do idioma japonês para a palavra “zero”, indicando uma genealogia de Zero Two/002, e dos demais parasites protagonistas como seus nomes próprios derivados de seu código numérico, e de sua matriz, a Princesa Kyouryuu, referida pelo Dr. Frank pelo código 001. Como Ayanami Rei, nas palavras usadas pela própria personagem, os parasites são “bonecos”, ou, na analogia feita na série em relação a eles, “plantas”, criados como ferramentas para cumprirem o que lhes foi programado.

A segunda ruptura trata do desenvolvimento dos personagens quando, também como eco da cena de um dos longas de Neon Genesis Evangelion em que Rei nega Gendoh afirmando que não é um boneco, Hiro/016 confronta o Lamarck Club e anuncia que após a última missão na fortaleza kyouryuu, Gran Crevasse, os parasites do Plantation 13 não mais terão um modo de vida determinado pela sua função como instrumentos dos adultos e que não considerarão mais o Lamarck Club como seu “Papa”. Tal conduta dos personagens se dá como reação à determinação da APE de apagar as memórias de Mitsuru/326 e Kokoro/556. Ou seja, como uma revolta contra as ações da sua figura paterna, a APE, que unilateralmente realiza o roubo do passado dos personagens e da capacidade de se contextualizarem em sua história pessoal e, assim, determinarem para eles um futuro além daquele decidido por estas figuras paternas como seus instrumentos.
Podemos entender esse processo pensando nas primeiras fases da infância em que as figuras paternas tentam ajudar a construir a personalidade do filho valendo-se de seus objetivos, gostos e percepções. De certa forma, os pais estariam ajudando ao filho a criar sua autoimagem, mas, simultaneamente, transformando o filho em uma versão miniatura deles próprios. Em algum momento, o filho passa a entender que não é uma extensão de seus pais e a tentar criar sua individualidade a partir de valores estabelecidos por ele próprio, e não apenas como uma reflexo dos seus criadores. Os abusos sofridos pelos parasites se tornam insuportáveis com o processo de apagamento de memórias ocorrido imediatamente após eles amadurecerem a ideia de que são sujeitos autônomos e não um produto cultivado para benefício de terceiros, o que leva à posição da necessidade de negar completamente os valores “paternos” impostos para poderem assumir plenamente suas individualidades.
Com a revelação de VIRM e da ocorrência de um conflito passado entre a entidade e os kyouryuu, a narrativa passa por outra mudança de paradigma. O que originalmente era um contexto pós-apocalíptico, e por consequência pós-histórico, torna-se apocalíptico. Os personagens deixam de existir em um contexto em que não possuíam conhecimento de seu passado e da formação da sua cultura estando incapazes de entender os processos sociais que os levaram à posição que ocupavam, e passam a existir em um contexto em que sabem sobre a construção histórica de sua sociedade, mas estando às vésperas de uma calamidade que encerrará este processo histórico de forma definitiva. De instrumentos incapazes de compreender seu passado e presente e, portando, de projetar um futuro, os protagonistas passam a ser agentes que compreendem sua própria história e almejam um futuro que está drasticamente ameaçado.
Da mesma forma como nessa última parte da narrativa os parasites do Plantation 13 rompem com suas figuras referenciais para poderem construir sua própria identidade, a produção da série passa por esta ruptura ao, após se apresentar como continuidade da genealogia de Neon Genesis Evangelion, negar na estrutura da narrativa algumas de suas simbologias nesta parte final. Em Neon Genesis Evangelion¸ a proposta original do grupo SEELE é “reiniciar” a criação divina, destruindo a sociedade humana e a levando de volta à fase original para que pudesse mais uma vez recomeçar do nada, mas dessa vez sem pecados. Ikari Gendoh e seus colaboradores imediatos passam a trabalhar em conjunto com a SEELE prometendo realizar seus propósitos, mas na verdade usando das vantagens da aliança para realizar seu projeto pessoal de provocar a evolução humana ao levar a humanidade a superar seus defeitos ao mesmo tempo em que deixaria de ser humana em uma forma próxima a uma fusão de humanos com EVAs que permitiria a sobrevivência da espécie, mesmo modificada, além e após a Terra. Entretanto, com a morte de sua esposa, o objetivo final de Gendoh e substituído pelo Projeto da Instrumentalidade Humana, a unificação de todas as formas de vida da Terra em uma única entidade abstrata que existe independente de um corpo físico como uma comunhão de todas as consciências que já existiram no planeta para, desta forma, poder voltar a estar próximo de Yui.
Dessa forma, VIRM de Darling in the FRANXX, a entidade expansionista formada por um conjunto de consciências coletivas assimiladas à força de diferentes espécies do universo, é uma representação análoga ao Projeto da Instrumentalidade Humana e a antagonista máxima da narrativa. A oposição verdadeira na narrativa é revelada não como sendo entre humanos e kyouryuu, mas entre a Terra e suas diversas espécies contra VIRM, que manipulava os dois lados para que se destruíssem mutuamente e facilitassem o processo de assimilação. A existência de VIRM é a vitória hipotética de Gendoh e o inimigo real a ser combatido.

Nesse ponto, Darling in the FRANXX nega Neon Genesis Evangelion quando o segundo apresenta propostas de desenvolvimento pós-humanistas, que sugerem a evolução da humanidade e a superação de suas limitações a partir da transcendência que leva além da condição humana e da definição do que seria humano, uma evolução que sacrificaria a identidade da humanidade como espécie, e a primeira propõe uma evolução da humanidade a partir da afirmação de sua condição humana que considera a necessidade de compreensão e respeito à aquilo que não é humano, mas que propõe um desenvolvimento da humanidade segundo seu “próprio caminho”. Assim, ao contrário do que mostra Neon Genesis Evangelion, Darling in the FRANXX nos apresenta um final otimista, não que conduz às portas do apocalipse, mas a um novo Eden e que, no final, seria a realização, mesmo que por uma motivação diversa, do projeto da SEELE.
O preço para garantir a possibilidade de um desenvolvimento do que é humano é o sacrifício de Hiro/016 e Zero Two/002, que precisam abrir mão de sua humanidade, cuja condição era justamente o objetivo principal almejado por Zero Two/002. No final, quando Zero Two/002 e Hiro/016 transcendem como Strelizia Shin Apus, eles realizam a ambição original de Ikari Gendoh e Ikari Yui tornando-se uma entidade que supera as limitações humanas podendo sobreviver além da Terra e após ela e compartilhando suas consciências de uma forma que possam estar sempre unidos.
Referências
CODE: 000; YABUKI Kentarou. Darling in the FRANXX. Jump Comics+. Vol. 1–8. Toukyou: Shueisha, 2018–2020.
GAINAX. Evangelion Chronicle. N. 1–50. Toukyou: DeAgostini, 2010–2011.
MATO. Darling in the FRANXX!. Jump Comics+. Toukyou: Shueisha, 9 de outubro de 2018.
Excelente texto, já havia notado algumas semelhanças entre Eva e Darling In The Franxx, mas o seu texto apontou muitas camadas de Darling que eu não havia percebido. É impressionante como as duas narrativas são tão similares e ao mesmo tempo tão diferentes.
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Obrigado! Uma das coisas que acho bacana em “Darling in the FRANXX” foi essa coragem de tentar seguir a tradição de “Evangelion” que, apesar de ser uma série bem importante dos manso 90, pouca gente teve coragem de tentar seguir estabelecendo uma genelogia estilística e temática por causa das muitas camadas complexas de “Evangelion” e a dificuldade de fazer algo à altura.
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