Dieferson Trindade é um quadrinhista de Porto Alegre, RS, que tem publicado suas obras de maneira independente através de plataformas de financiamento coletivo. Suas HQs costumam ser narrativas fechadas, mas que transitam por um grupo de temas familiares.

Cornos, publicada em 2016, conta a história de uma garota frustrada e sem muitas perspectivas de vida que passa a ter sonhos estranhos. Nesses sonhos, a personagem é procurada por um rapaz com chifres que tenta se comunicar com ela. A narrativa se alterna entre o mundo real, em que a protagonista, em ambientes urbanos, conversa com seu amigo tentando entender a natureza de seus sonhos, e o mundo onírico, em que ela é procurada pelo rapaz de chifres que tenta fazer com que entenda algo sobre sua própria natureza.

O Mundo de Oz, com roteiro de Flávio de Almeida e ilustração de Dieferson Trindade, publicada em 2017 conta a história de um garoto com dificuldades na escola, que sofre de bullying e tem sérios problemas de relação com a família. A forma como o protagonista reage aos seus problemas é refugiar-se fora da realidade. Um de seus mecanismos de escapismo está no sono, em que tem sonhos que pode manipular livremente à sua vontade. Até que um velho gato nos seus sonhos tenta influenciá-lo a confrontar seus problemas no mundo real, e a realidade e sonhos passam a se misturar. O Mundo de Oz traz temas e referências a filmes da década de 1980, e parte da narrativa é construída a partir de sua relação com letras de músicas de bandas como Black Sabbath e Iron Maiden, nas quais o protagonista tenta se refugiar dos problemas reais, mas que acabam remetendo sempre a eles.

Já em Afronta, publicada em 2018, trata das relações de uma família que vive e se define sempre à sombra de uma relação violenta a partir do pai/marido. Nela, Trindade representa de forma misturada e sobreposta a realidade objetiva vivida pelos dois garotos, Ignacio e Isac, e sua mãe com a percepção subjetiva que têm de sua casa e das relações de poder e dependência entre os membros da família.

Um tema comum às três HQs é a posição de seus protagonistas diante de suas vidas. São todos figuras que estão encurraladas, que desejam a mudança, mas, ao mesmo tempo, não sabem ou não conseguem quebrar o ciclo vicioso a que estão presos. São todos personagens que têm como maior empecilho a autoimagem que fazem deles próprios. A protagonista de Cornos deseja parar de sofrer e mudar sua vida, mas não toma nenhuma atitude para que isto aconteça porque teme tentar algo que vá resultar em um novo fracasso. Assim, prefere, acreditando que sempre fracassará em qualquer realização que pretenda, permanecer inerte para não ter de lidar com possíveis novas decepções. Ela construiu e aceitou a imagem de ser incapaz de qualquer realização positiva e usa tal construção como referencia para determinar suas ações. Diante da prisão autoimposta da protagonista, seu amigo tem uma reação muito comum às pessoas que convivem com sujeitos depressivos: ele quer ajudar, mas não tem ideia de como fazer isto, conseguindo apenas observá-la emaranhar-se em seu ciclo autodestrutivo e repetir que não sabe como auxiliá-la.

O roteiro de Flávio de Almeida para O Mundo de Oz é o mais otimista das três obras. O protagonista também vive em uma prisão criada a partir das imposições e não aceitação vindas daquelas que o rodeiam, principalmente de sua relação com o pai construída a partir da ausência de comunicação entre eles. A maneira que o protagonista cria para lidar com a constante desconstrução de sua própria imagem feita pelas pessoas à sua volta, que querem que ele seja, escolha e aja de maneira diversa de sua própria natureza, é se isolar, evitar o confronto e evitar o mundo real. Entretanto o gato o assombra com um potencial de mudança de sua condição que pode ser iniciada a partir da confrontação dessas pressões externas. O protagonista de O Mundo de Oz também vive em agonia e encurralado, sem conseguir sair de seu lugar comum para promover uma mudança em sua vida, mas sua dificuldade de promover alguma mudança em seu comportamento é menos por medo do fracasso como a protagonista de Cornos e mais por falta de coragem para desafiar as forças que o encurralam e que parecem muitas e insuperáveis.


Já em Afronta, os garotos Ignacio e Isac, bem como a mãe deles, vivem encurralados em uma vida sem perspectiva em que a força que os domina e atormenta é o pai/marido. Ao mesmo tempo em que os personagens sabem que sua condição é algo ruim e que a fonte de seu sofrimento é seu pai/marido, eles estão condicionados a este modelo de vida. Sua dificuldade em sair do lugar comum e promover alguma mudança se dá mais por estarem tão condicionados ao ponto de não conseguirem sequer imaginar um modelo diferente de vida. Mesmo as pequenas mudanças, como as repetidas partidas e retornos do pai/marido de casa, dão-se de forma cíclica que sempre leva os personagens para a mesma situação de angustia e de dominação, em que os indivíduos não têm autonomia para existirem como sujeitos, mas existem e se definem sempre à sombra do pai/marido e do sofrimento que ele impõe com sua presença. Esse estado de prisão sem perspectiva de fuga já está presente em Phóbos Ignacio, outra HQ do autor de 2016 da qual Afronta toma fortes referências ou, até, da qual é uma releitura. Os integrantes da família de Afronta só sabem se definir como sujeitos a partir de seu sofrimento, e por isto o pai/marido acaba sendo essencial em suas vidas e se torna tão difícil abandoná-lo: deixá-lo seria para eles deixarem de saber quem são e como viver. Se a protagonista de Cornos tem uma perspectiva de uma alternativa de fuga de sua dor no final da história, e o protagonista de O Mundo de Oz a tem nos seu sonhos, Ignacio, Isac e a mãe deles não têm para onde fugir porque só sabem existir em sua dor, porque só sabem entender o mundo e se ver a partir da perspectiva de seu algoz.

Formalmente, o estilo de desenho de Trindade tem influência de Matsumoto Taiyou (1967-), não só no design de personagens como também na forma de compor os cenários. São espaços diegéticos autônomos, capazes de existirem e serem compreensíveis mesmo se não houvessem personagens ocupando-os e que seguem uma estrutura lógica naturalista e um sistema de perspectiva organizado e extremamente detalhados. Entretanto, como faz Matsumoto, seus ambientes são compostos por traços irregulares, e seus enquadramentos parecem forçar o sistema de perspectiva para criar efeitos de distorções e instabilidade, como se a imagem estivesse sendo vista através de um tipo de lente muito específica. O que combina bem com sua narrativa que sobrepõe o espaço diegético objetivo da história com a interpretações subjetivas feitas pelos personagens deste espaço, fazendo com que o cenário por si só conte parte da história e gere sobre o leitor efeitos emocionais. Um dos exemplos disso é a casa onde vive a família de Afronta. Ela não só parece ser um lugar real — que o leitor poderia identificar se um dia passasse por ela na rua e reconhecer e transitar pelo seu quintal sabendo onde estavam os personagens em cada cena e para que lado estavam olhando ou caminhando — como, ao mesmo tempo, é a personificação física de toda a angústia que o pai/marido impõe aos personagens, uma lembrança dele que cerca os personagens e os impedem de se distanciarem.


As três HQs são excelentes obras para pensarmos sobre como os sujeitos criam prisões para eles próprios e se definem a partir da sua dor e daqueles que os machucam, bem como sobre como o medo de arriscar e errar pode se tornar um poderoso opressor que dificulta a produção de mudanças e a libertação.

Referências
ALMEIDA, Flávio de (roteiro); TRINDADE, Dieferson (ilustração). O Mundo de Oz. Independente, 2017.
TRINDADE, Dieferson. Afronta. Porto Alegre: independente, 2018.
TRINDADE, Dieferson. Cornos. Porto Alegre: independente, 2016.
TRINDADE, Dieferson. Phóbos Ignacio. Capítulo 1. 2016. Disponível em: https://issuu.com/diefersontrindade/docs/jpg2pdf