A Batalha de Roncesvalles

Éginhard (c. 775-840) foi um escritor e erudito que esteve a serviço de Carlos Magno (742-814). Inspirado na obra De Vita Cesarum (Sobre As Vidas de Césares ou Vidas dos Doze Césares) de Gaius Suetonius Tranquillus (c. 69-depois de 122), Éginhard escreveu o que se considera a primeira biografia de um rei europeu medieval, o Vita Karoli Magni (A Vida de Carlos Magno). Em uma passagem de seu texto, Éginhard narra a Batalha de Roncesvalles, ocorrida em 15 de agosto de 778, na qual os exércitos bascos prepararam uma armadilha para as tropas de Carlos Magno no território que atualmente fica na fronteira entre a Espanha e a França. Durante o período, a instabilidade política e as revoltas internas entre os grupos nativos e os conquistadores de origem muçulmana na Península Ibérica foram vistas por Carlos Magno como uma oportunidade de ampliar a dominância da Cristandade e de seu reino sobre a região. Entretanto uma revolta dos saxões no norte do reino motivou a retirada das tropas de Carlos Magno da Península Ibérica para lidar com o conflito na fronteira norte.

Durante retirada das incursões militares pelo território ibérico, as tropas de Carlos Magno promoverem ataques preventivos contra os grupos nativos da região fronteiriça para enfraquecê-los e impedi-los de virem a ser uma ameaça futura como força independente ou se aliando aos líderes muçulmanos. Esses ataques tiveram entre seus alvos Pamplona, na época uma cidade sob controle basco, e teriam devastado, se não a cidade toda, pelo menos suas muralhas. Após garantir a segurança na região e obter vitória em todas as incursões na Península Ibérica, as tropas de Carlos Magno marcharam rumo aos montes Pirineus para retornar ao território franco, deixando alguns de seus senhores feudais de confiança responsáveis por liderar a retaguarda, entre eles estavam o Conde Paladino Anselmus, Eggihard — o Prefeito do Palácio — e Hruodland (?-778) — o Governador da Marca de Bretanha.

Quando as tropas passavam pela Passagem de Roncesvalles e tiveram de adotar a formação em fila para atravessar pelas rota estreita, foram atacados em uma emboscada por tropas bascas buscando vingança pela destruição de sua cidade, que apesar das condições inferiores em números, tinham melhor conhecimento do terreno e lutavam com equipamentos leves — os guerreiros bascos do período costumavam não usar armaduras pesadas e empunhavam com armas principais um par de lanças curtas e, como arma secundaria, uma espada curta — conseguindo separar a comitiva de mantimentos e as defesas de retaguarda do restante da tropa principal, que seguiu em frente acreditando que os retardatários estavam apenas atrasados, mas que vinham a caminho. Durante a batalha, as tropas de retaguarda francas foram dizimadas pelos bascos, incluindo os senhores feudais e paladinos que a lideravam, e as bagagens e pilhagens feitas na Península Ibérica foram saqueadas. A Batalha de Roncesvalles foi a mais significativa derrota sofrida por Carlos Magno durante sua carreira militar.

A Canção de Rolando

A Canção de Rolando (La Chanson de Roland) é uma canção de gesta — categoria de poema narrativo para ser declamado com acompanhamento musical contando grandes feitos militares típico da Alta Idade Média — , escrita em um idioma românico narrando os acontecimentos em torno da Batalha de Roncesvalles, bem como os eventos que a antecederam e suas consequências imediatas. Possui sua versão mais antiga, datada de entre 1130 e 1170, assinada pelo bardo misterioso conhecido apenas como Turold. a obra tornou-se uma das mais importantes narrativas medievais, influenciando a poesia e a canção da época e sendo usada como um dos alicerces culturais na legitimação da unidade cultural francesa e europeia.

A narrativa se inicia com o exército de Carlos Magno sitiando a cidade de Saragoça, que estava sob comando de Marsílio, rei mulçumano sarraceno. Depois de sete anos de cerco, um dos generais de Marsílio de nome Blancandrino sugere uma nova estratégia ao seu rei. Blancandrino diz a Marsílio que envie tributos, reféns e uma promessa a Carlos em troca da paz: que ele iria em pessoa até a capital de Carlos Magno e lá se converteria ao cristianismo assim permanecendo com posse da metade das terras da Península Ibérica, mas jurando vassalagem a Carlos Magno, sendo tal promessa apenas um engodo para fazer os cristãos recuarem e dar tempo a Marsílio, que não pretendia cumpri-la.

Ao receber a proposta, Carlos Magno reúne em conselho seus principais cavaleiros e aliados, incluindo aqueles a quem chama de Paladinos ou de Doze Pares de França, seus vassalos mais próximos e leais. Nesse concilio fica decidido aceitar a proposta de Marsílio, mas um dos homens de Carlos deve ir até Saragoça para confirmar o trato. O sobrinho de Carlos Magno, Rolando, bem como outros se oferecem para tal missão — que possivelmente era suicida, pois os cavaleiros que foram anteriormente enviados a ter uma audiência com Marsílio jamais voltaram —, mas o Imperador se nega a abrir mão dos serviços de seus estimados Doze Pares. Então Rolando sugere que seja enviado seu padrasto Ganelão, e tal sugestão é acatada. Ganelão já possuía ressentimentos em relação a Rolando e aceita a missão, mas não sem antes jurar vingança ao predileto do Imperador.

Durante a viagem até Saragoça, Blancandrino percebe o ódio de Ganelão por Rolando, e, ao chegarem ao Rei Marsílio, os três armam um acordo. Enquanto Carlos Magno conduzisse suas tropas de volta à França, Marsílio enviaria um poderoso exército para obliterar as tropas de retaguarda. O papel de Ganelão seria se certificar de que Rolando estaria nessa retaguarda. Com a morte de Rolando, Ganelão teria satisfeita sua vingança, e Marsílio acreditava que destruiria a confiança do exército franco e de Carlos, pois a dor de perder seu herói os faria perder a vontade de lutar.

O plano de Marsílio e seus aliados é executado com sucesso, mas na retaguarda ficam Rolando, seu amigo Olivier, o Bispo Turpin e todos os Doze Pares de França. Marsílio envia um gigantesco exército liderado por doze notáveis cavaleiros, incluindo seu próprio filho. Então se segue uma detalhada cena de combate em que cada um dos notáveis sarracenos é descrito como com grande poder, mas, mesmo assim, são brutalmente derrotados por um único golpe dos Doze Pares, mostrando a superioridade destes. Tamanho é o ataque, que os francos acabam perecendo, mas não sem antes derrubar uma quantidade infindável de inimigos. Ao final, quando resta apenas Rolando, ele resiste exageradamente antes de morrer, caindo desfalecido e se pondo em pé novamente por muitas vezes.

Quando descobre a traição ao ouvir o tocar da corneta de marfim de Rolando a pedir auxílio, Carlos volta com seu exército apenas para encontrar seus amados cavaleiros mortos. Então o imperador cristão vai até Saragoça, onde combate o Rei Marsílio — destroçado após perder o filho e sua mão diante do poder do falecido Rolando — e um gigantesco exército liderado por Beligante, o Emir da Babilônia que veio em auxílio de Marsílio trazendo todos os seus notáveis cavaleiros. Após o confronto final em que os cristãos saem vencedores e destroem totalmente as forças inimigas, Ganelão é levado prisioneiro à França e julgado.

A narrativa tem como ato final a batalha entre Pinabel — que defende Ganelão alegando que ele apenas se vingara de Rolando por justo motivo e não traíra ao Imperador — e Thierry — um minguado cavaleiro franco que é o único a ter coragem de desafiar Pinabel. Com a vitória de Thierry, Ganelão e seus parentes, que ofereceram suas vidas em garantia à sua inocência, são executados.

Alguns pontos da narrativa valem ser destacados. Primeiro é a distorção do contexto histórico. A Batalha de Roncesvalles histórica teve como centro o confronto dos exércitos francos contra tribos européias bascas não cristãs que se negaram a se submeter a Carlos Magno. O Bispo Turpin é mostrado como um clérigo guerreiro, uma categoria que não era vista no período de Carlos Magno, mas que se tornou comum durante as Cruzadas no século XII, época em que A Canção de Rolando ganhou sua forma escrita. Após mais de trezentos anos de tradição oral da narrativa, quando ela finalmente foi registrada a Cristandade estava combatendo os muçulmanos nas Cruzadas no Oriente Médio e também na Península Ibérica nas chamadas Cruzadas do Ocidente ou Guerras de Reconquista. Assim, os inimigos de Carlos — que representava a Cristandade a unidade europeia — foram substituídos por muçulmanos que se opunham a tal unidade cristã, pois eram eles que no tempo do registro escrito da narrativa eram vistos como uma ameaça alienígena à cultura cristã europeia.

Também fica clara a idealização de Carlos Magno e de seus Doze Pares, bem, como de toda a Cristandade em oposição aos pagãos. Por mais que os inimigos sejam descritos como poderosos ou valorosos, sempre existe um contraponto que os limita, às vezes explicitamente, por não serem cristãos. Dessa forma, todo o poder de um guerreiro de elite valoroso muçulmano se mostra inútil contra um cavaleiro cristão, e ele é facilmente derrotado por um único golpe que literalmente o parte ao meio junto com seu cavalo.

Carlos Magno também é idealizado, sendo mostrado como um homem sábio de mais de duzentos anos que é conduzido diretamente por Deus por intermédio de anjos que lhe falam em sonhos ou pela entrega de armas mágicas invencíveis, assim tendo como justificativa para todos os seus atos o cumprimento de uma vontade divina. Carlos — que na época dos acontecimentos ainda era rei, mas aqui já tratado como Imperador — é um soberano justo, como mostrado ao permitir que Bramimunda, rainha de Saragoça, fosse até a França e se convertesse ao cristianismo por livre vontade, e também ao dar a Ganelão, apesar de todos os seus atos de traição, a oportunidade de se defender em um julgamento justo — por combate. No final da narrativa, o arcanjo Gabriel surge a dá a Carlos uma nova missão, demonstrando mais uma vez a posição do Imperador como um servo a serviço de Deus que, mesmo cansado, não deixa de cumprir a tarefa dada por seu suserano divino. Talvez aí uma forma de reforçar os valores de obediência presente nos pactos de suserania e vassalagem que sustentavam as estruturas sociais da época.

Os inimigos são representados claramente por alguém que não possuía — ou não desejava possuir — conhecimento sobre sua cultura “estranha”. Apesar de serem mulçumanos, aparecem orando a uma Trindade profana formada por um Maomé divino por si próprio, um Apolino helenístico e a figura de Tervagant, que se tornou uma divindade pagã ou demônio comum na literatura medieval posterior a A Canção de Rolando, mas cuja origem e etimologia ainda é objeto de discussão. Também existem feiticeiros e bruxos entre as tropas de Marsílio. Além disso, tais sarracenos são chamados quase que em todas as citações de “pagãos”, não só pelos cristãos, como invocam a si próprios e a seus aliados com frases como “Sigam-me, pagãos!”.

Durante toda a narrativa, a terra de Carlos Magno é tratada por “Doce França”, mostrando-a como um lugar único e especial, sendo até mesmo os “pagãos” a lhe chamar por tal expressão com reverência, e nunca com desprezo. Também fica clara a manifestação na crença na Teoria do Direito Divino dos Reis, pois Carlos Magno insiste em alegar que vencerá os conflitos militares nos qual toma parte porque “está Certo”. E como prega a crença no Direito Divino, tudo o que acontece no mundo é desejo de um Deus onipotente da qual à vontade não se pode opor, e este Deus é bom e justo e sempre apoia os justos. Assim, se todos os acontecimentos são vontade de Deus, e este Deus só deseja o bem e a justiça, aquele que for justo terá o favor de Deus e sempre vencerá o injusto. Ou seja, ao vitorioso no ato final se presume como portador de uma legitimação moral que tem seus atos justificados por ter sempre agido como um instrumento da vontade divina. A crença nesses princípios do Direito Divino legitimavam, inclusive, o sistema judicial do início da Idade Média baseado na ordália — que consistia em colocar o acusado em uma provação diante de uma força da natureza, como andar sobre ou colocar o punho entre brasas fumegantes — e no julgamento por combate, presumindo que se o acusado fosse justo, e portanto inocente, seria protegido por Deus e poupado de sofrer danos superando o desafio. Isso fica evidente ao final do texto quando Thierry, um cavaleiro pequeno e mirrado, opõe-se ao poderoso Pinebal e, ao ser atingido na cabeça, sofre apenas um leve ferimento superficial e derrota seu oponente. Como Thierry estava a defender o justo, foi favorecido militarmente por Deus, sua vitória era imperativa e não possível de oposição.

Uma vez que o Historia Caroli Magni, originalmente atribuído ao Bispo Turpin, foi descoberto como um documento forjado durante século XII — possivelmente para incentivar as viagens de peregrinação na região às voltas de Roncesvalles —, o Vita Karoli Magni é o único documento do período do reinado de Carlos Magno a registrar o personagem histórico Hruodland — Roland, na grafia francesa mais recente —, que é apresentado como Brittannici Limits Praefectus (Governador da Marca de Bretanha) região localizada no noroeste da França e, na época, a fronteira que afirmava e defendia o reino contra os bretões originários da atual Inglaterra. Quando A Canção de Rolando foi escrita no século XII, mais de trezentos anos depois da Batalha de Roncesvalles, o personagem histórico já havia adquirido através da tradição oral uma série de atributos não presentes no registro original que o reimaginavam como um cavaleiro idealizado, o favorito de Carlos Magno e sobrinho do rei. O texto apresenta como seu escudeiro e leal companheiro Olivier — em textos posteriores citado como Olivier de Vienne ou Olivier de Gennes, cuja existência histórica não pode ser comprovada por nenhuma referência anterior a A Canção de Rolando. Tinha ainda como montaria o confiável e valente cavalo Vielantiu — Veillantif na grafia moderna — cujo significado é “Vigilante”, e empunhava a espada Durendal — que ganhara de presente de Carlos Magno, que por sua vez a recebera de um anjo, e possuía em seu cabo uma série de relíquias, como o sangue de São Basílio Magno (c. 329-379), cabelo de São Denis, um dente de São Pedro e um fio do manto de Maria de Nazaré, que faziam da espada indestrutível e a mais afiada que já existiu, capaz partir homens de armadura e seus cavalos ao meio com um único golpe e fender montanhas. Também portava um olifante, uma corneta feita de uma presa de elefante capaz de emitir uma única nota e usada comumente na Alta Idade Média como sinalizador militar.

As narrativas medievais tornaram Rolando, um nobre militar que administrou uma região sem nunca solucionar seus problemas de instabilidade política, que morreu derrotado em uma batalha que foi o maior fracasso militar de seu suserano e antes de poder ver a grandeza do futuro Império Carolíngio que se formaria ao redor do reino do qual contribui para construir, no maior símbolo e ideal da cavalaria da Europa ocidental continental, tendo sua narrativa mítica paralelo em importância para a literatura do período e da formação do imaginário da cavalaria medieval apenas no Matéria de Bretanha (Matter of Britain), que apresenta as narrativas a respeito do rei Arthur Pendragon da Britânia e seu Cavaleiros da Távola Redonda.

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Oito fases da Canção de Rolando, iluminura da edição de Grandes Crônicas da França pertencente a Filipe III de Borgonha

 

Outras “Canções”

Durante a Idade Média houveram vários textos que apresentavam releituras ou expansões para a narrativa d’A Canção de Rolando, incluindo a Matéria de França (Matiére de France) — ou Ciclo Carolíngio (Cycle Carolingien) —, o Girart de Vienne de c. 1180 — que conta a origem da amizade de Rolando e Olivier —, a Chanson d’Aspremont do século XII — que narra a origem de Veillantif, Durendal e do olifante como espólios conquistados ao derrotar Aumon, o filho do rei sarraceno africano Agolant —, o texto nórdico do século XIII Karlamangnús Saga — que atribui a criação de Durendal ao ferreiro mítico nórdico Wayland e afirmava que o olifante de Rolando teria sido confeccionado a partir de um chifre de unicórnio — e o forjado Historia Caroli Magni do século XII de autoria de um pseudo-Turpin. Entretanto houveram outras releituras da obra e do seu protagonista após a Idade Média, sendo algumas das mais influentes as que apresentaremos na sequência.

 

Orlando Enamorado

A história de Rolando é retomada por Matteo Maria Boiardo (1441-1494). Com a queda do Império Bizantino, boa parte de seus habitantes procurou refúgio na Europa ocidental, levando consigo algo que os cristãos do ocidente haviam perdido durante a Idade Média: os textos originais dos povos da Grécia clássica. A redescoberta da cultura e filosofia grega — tendo como seu principal ideal a filosofia platônica — pelos povos do oeste europeu a partir do final do século XIII e o culto a esta cultura como uma forma de recuperar a sabedoria perdida dos antigos resultou no movimento conhecido como Renascença. Boiardo, convivendo e sendo influenciado pelo ideal neoclássico, decidiu-se a reescrever a história de Rolando, mas não como se faria dentro da cultura medieval ou segundo o modelo das canções de gesta, que eram vistos como esteticamente inadequados e selvagens à época, e sim segundo as regras formais e ideais elaborados pelos seguidores do movimento renascentista.

Pelas mãos de Boiardo, Rolando reviveu como Orlando no poema intitulado Orlando Enamorado (Orlando Innamorato) em 1476 (publicado em 1495). Nessa versão, além de Orlando ser um dos paladinos a serviço de Carlos Magno, o foco da narrativa dá-se em torno de seu amor por Angélica, filha do rei oriental de Catai — ou Cataio, nome usado genericamente pelos europeus da Idade Média para se referirem à China — cuja mão seria oferecida como prêmio ao vencedor de um torneio de lutas que derrotasse seu irmão, Argalia, em combate. Cristãos e pagãos participam das batalhas pela mão de Angélica. Após seu irmão ser morto pelo pagão Ferrabrás, a princesa foge rumo à Floresta de Ardenne e é perseguida pelos cavaleiros que a disputavam, incluindo Orlando e seu primo Rinaldo di Montalbano — ou Renaud de Montauban, personagem originalmente apresentado em outra canção de gesta do século XII: Os Quatro Filhos de Aymon (Quatre fils Aymon). Angélica acaba bebendo de uma fonte mágica do amor e se apaixona por Rinaldo, mas ele bebe da fonte do ódio e se torna agressivo. Após Rinaldo ser aprisionado em uma ilha a pedido de Angélica pelo mago Malagigi, ela é capturada pelo rei oriental Agripane. Orlando vai até o Oriente, derrota Agripane e confronta seu primo insano. Então surge o rei sarraceno africano Agramante que, com seu exército, sitia Paris como vingança pela morte de seu pai nas mãos Orlando e com o objetivo de destruir o reino de Carlos Magno. Rinaldo, Angélica e Orlando retornam à França e, no caminho, Angélica e Rinaldo novamente bebem das fontes mágicas, mas dessa vez da forma inversa à anterior. Orlando e Rinaldo decidem por duelar pelo amor de Angélica, mas o rei Carlos Magno prefere entregar a mão da donzela àquele que derrotasse Agramante. Paralelamente, Bradamante, irmã de Rinaldo que permaneceu na França, apaixona-se pelo cavaleiro sarraceno Ruggero — ou Ruggiero — em um conflito de amor impossível entre uma cristã e um pagão.

Boiardo retoma o tema central de A Canção de Rolando, mas a partir da perspectiva da tradição do Humanismo. O autor mantém o protagonista e os demais paladinos de Carlos Magno defendendo uma unidade de Cristandade em tensões contra líderes pagãos que teriam invadido o continente europeu, mas colocando esta disputa como cenário de fundo para uma série de novas perspectivas de personagens em conflitos pessoais e apresentando-os como continuidade das tradições clássicas helenas e romanas. Como no caso de Durendal, que é apresentada com a espada que anteriormente pertencera a Heitor de Troia.

Infelizmente o poema jamais fora concluído por Boiardo, pois a Península Itálica foi invadida pelos exércitos do rei francês Charles VIII (1470-1498), e Boiardo veio a falecer.

 

Orlando furioso

Em 1502, Ludovico Ariosto (1474-1533) decide-se a continuar a história de Orlando em seu Orlando furioso (publicado pela primeira vez em 1516 e tendo sua versão definitiva de 1532). Já influenciado pelos temas e formas do estilo Barroco, Ariosto deixa de lado o tom de cavalaria idealizado e sério de Boiardo e o substitui pela influência da cultura de contradições, que o leva a misturar tragédia e comédia, fatos históricos com fantasia absurda, e a representar seus personagens tomados por sentimentos contraditórios.

Ariosto tinha como mecenas os nobres Afonso I d’Este (1476-1534) e Ippolito II d’Este (1509-1572), descendentes de Ruggiero e Bradamante, que, ao financiarem a obra, levaram Ariosto a dar mais espaço para a narrativa do amor proibido da guerreira cristã Bradamante e o cavaleiro sarraceno Ruggiero. Em sua história, Orlando vaga pela Europa em busca de Angélica passando por uma série de aventuras, combates e eventos fantásticos. Quando finalmente encontra sua amada, percebe que seu sentimento não é retribuído e enlouquece tornando-se uma figura violenta e devastadora. O herói só volta ao seu estado normal após Astolfo, um cavaleiro inglês, recuperar juízo de Orlando perdido. Além das tramas principais envolvendo Orlando, Angélica e o cavaleiro de origem mulçumana convertido ao cristianismo Ruggiero, a versão final do poema inclui centenas de personagens coadjuvantes, nos quais Ariosto explora vários aspectos das emoções humanas e cria complexas redes de profundidade psicológica até então não vistas nas narrativas de Rolando, mesmo sem tratar de assuntos políticos ou religiosos. Na verdade, a obra de Ariosto está impregnada de um pessimismo que reconhece seu tempo como o fim de algo bom que se extingue e ruma à decadência.

Apesar de a narrativa se centrar no conflito das emoções humanas de seus personagens, ela é permeada de cenas de comédia e fantasia, como o fato de estarem depositados na lua todos os objetos perdidos e não mais encontrados da Terra, e que Astolfo vai até lá, montado em um hipogrifo — idealizado por Ariosto como uma alegoria do absurdo e do amor impossível a partir da crença medieval de que grifos e cavalos se odiavam —, para recuperar o juízo de Orlando e devolvê-lo ao seu dono.

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Jean-Auguste-Dominique Ingres (1780-1867), Ruggiero resgatando Angélica, 1819

 

Childe Roland à Torre Negra chegou

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Anno Hideaki (1960-), Neon Genesis Evangelion (1995-1996)

O poeta inglês Robert Browning (1812-1889) — autor de Pippa Passes de 1841, que é a fonte original da frase “God’s in His heaven — All’s right with the world” citada no logo da organização NERV da série de animação Neon Genesis Evangelion (1995-1996) de Anno Hideaki (1960-) — escreveu em 1855 o poema Childe Roland à Torre Negra chegou (Childe Roland to The Dark Tower Came) a partir de uma citação de Rei Lear (King Lear, c. 1605) de William Shakespeare (1564?-1616) e apresenta uma reinterpretação de Rolando segundo as tradições do Romantismo. Esse poema trata da jornada de um childe — termo para um cavaleiro que ainda não passou por uma provação — de nome Roland em busca de uma Torre Negra. Durante os versos da narrativa, Roland caminha sozinho rumo à sua missão, adentrando um território cada vez mais doente e estéril onde a caminhada se torna a cada passo mais difícil e sofrível. Durante a jornada, Roland relembra todos os outros cavaleiros seus amigos com quem ele faltou ao perdê-los pelo caminho. O cavaleiro revela ter possuído esperança de atingir seu objetivo no início, mas depois entende que não há esperança, pois não busca de fato um objetivo, e sim trava a busca por uma busca, sendo que o único final possível para quem trilha tal caminho é ser destruído pela própria jornada. Ao final, a única “Torre Negra”, a única tarefa que executa, como os demais cavaleiros a se empenharem em tal demanda, é morrer por ela.

 

O Senhor dos Anéis

J. R. R. Tolkien (1892-1973), ao criar sua mitologia própria em O Senhor dos Anéis (The Lord of The Rings, 1954-1555), usou Rolando como base para seu personagem Boromir. Boromir é o mais importante cavaleiro de sua terra, Gondor, e quem comanda seus exércitos para a vitória, mas que, na ânsia de solucionar o conflito, age de maneira temerária e sempre disposto ao combate. Ao seu final, Boromir fica responsável pela retaguarda de sua comitiva, quando ela é atacada, e morre depois de muito lutar sendo alvo de muitos golpes e flechas. Antes de cair, Boromir toca sua corneta convocando Aragorn — a figura do grande e justo rei — e seus aliados, e quando estes o encontram, está morto com a espada em uma das mãos e a corneta quebrada na outra, cercado de vários cadáveres de seus inimigos em uma cena muito parecida e com a mesma simbologia da em que Carlos Magno encontra o corpo de Rolando. Boromir também é o cavaleiro virtuoso obcecado pela glória e por satisfazer os interesses de seu povo e de seu suserano — representação aqui dividida nas figuras de Aragorn, seu rei legítimo, e Denethor, seu pai e regente — e se destrói por isso.

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Sean Bean como Boromir em O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel, 2001

 

Donald furioso

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Luciano Bottaro (1931-1966), Donald furioso, 1966

 

Em maio de 1966 foi publicada na Itália a história em quadrinhos Donald furioso de autoria de Luciano Bottaro (1931-1966). Bottaro narra uma ocasião em que Donald e Gansolino, ao invés de ajudar o restante da família na colheita de maçãs, preferem fugir do trabalho para dormir. Uma bruxa que passava por acaso pelo local vê a cena e resolve pregar uma peça nos preguiçosos transportando-os para a Idade Média como Rolando e Oliver, respectivamente. Enquanto Donald é um cavaleiro fracassado e parte para salvar Angélica de um mago que a sequestrara, a capital do rei Pato Magno é sitiada por metralhas sarracenos. Donald derrota o mago, mas Gansolino recebe os créditos e as recompensas pelo resgate, o que faz Donald enlouquecer em fúria e atacar tanto os metralhas, como o rei e seu primo Gastão no papel de Rinaldo, que tem de ir à lua recuperar o juízo perdido de Donald. Apesar de reimaginar a história em um tom cômico e simples e inserir os personagens da Disney como se atuando nos papéis principais, Bottaro mantém o cenário de fundo original e o tema do herói caindo em loucura.

 

A Torre Negra

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Jae Lee (1972-) e Richard Isanove (1968-), capa para The Dark Tower: The Gunslinger Born, 2007, Marvel Comics

Em A Torre Negra (The Dark Tower, 1978-2012), Stephen King (1948-), influenciado pel’A Canção de Rolando, pelas Matéria de França e Matéria de Bretanha e por Childe Roland à Torre Negra chegou, conta a história de Roland Deschain, uma reinterpretação do cavaleiro obcecado em cumprir seu objetivo, chegar à Torre Negra, ao ponto de sacrificar tudo para isto, até mesmo a si próprio, como o Rolando medieval. Em um mundo corrompido e em degradação, Roland é o último de uma linhagem perdida de Pistoleiros — cavaleiros românticos portadores de armas de fogo que serviam a um grande imperador que no passado unificara e civilizara o mundo. Esse imperador, chamado Arthur Eld — alto, sábio e com uma longa barba branca, trajando uma armadura reluzente, com uma espada mágica em uma das mãos e um revólver na outra —, que inspira Roland é claramente uma representação de um amálgama dos míticos Carlos Magno e Arthur Pendragon. A inovação aqui é a referência às armas de fogo como alegorias para o imaginário do heroísmo romântico, pois esses cavaleiros idealizados são os últimos homens a seguirem os antigos ideais heroicos de cavalaria e a dominarem a tecnologia da pólvora. A obra de King se desenvolve em oito volumes misturando fantasia, ficção científica e terror e se relacionando com praticamente toda sua produção como escritor ao unificar o universo diegético de suas obras e se estendendo por narrativas conexas publicadas no formato de histórias em quadrinhos pela Marvel Comics de autoria de Peter David (1956-), Robin Furth, Jae Lee (1972-) e Richard Isanove (1968-).

 

O Novo Modelo de Herói

A categoria heroica como é construída através dos mitos helenos possuía algumas características definidoras. Um desses elementos que constituía originalmente o herói era a posse das chamadas Virtudes Competitivas[1], o conjunto de atributos que permite a este indivíduo superar os desafios e adversidades em uma proporção além da do homem comum. Um herói era um indivíduo exemplar por poder superar as oposições surgidas em seu caminho.

Além disso, o herói clássico passa, em sua narrativa mítica, por dois momentos fundamentais que o definem: a katábasis — o estado de descida ou decadência mental, moral, física ou espiritual — seguida pela anábasis — a superação do estado de decadência e sua reascensão. Sendo que a katábasis levava alguns heróis até o estado de hýbris, ou excessos, em que, motivado por orgulho ou arrogância, cometia ações que escapavam da racionalidade ou chegavam a ser injustas, sendo o ponto extremo da decadência heroica da katábasis e podendo levar o herói à fúria destrutiva e à loucura. O estado de hýbris pode ser encontrado nas narrativas míticas de muitos dos heróis helenos, como o assassinato da família de Herakles pelo próprio herói, a fúria agressiva desmedida de Aquiles e a afirmação de Odisseu diante do próprio triunfo de que os homens não precisavam dos deuses, todas os levando a desgraças. A hýbris é o momento em que a selvageria da qual o herói se apropria para poder confrontar as forças incivilizadas o domina e cuja necessidade de confrontar e se sobrepor durante a anábasis consiste em seu teste derradeiro de superação.

Entretanto as narrativas heroicas helenas também apresentam o ponto extremo da anábasis, a apothéosis, em que o herói supera completamente as adversidades ao libertar-se completamente forças caóticas e selvagens e ascende a um estado sobre-humano tornando-se um igual às divindades. Ou seja, a selvageria e a ausência de ordem vistas como o principal vício do mundo também são atributos inerentes ao humano, sendo sua principal condição o eterno estado de conflito com estas forças instintivas e não-racionais que o atormentam internamente. Ao superar esse conflito, o herói heleno também supera e nega sua condição humana, tornando-se algo além e superior à humanidade, algo divino.

Sendo assim, o herói clássico não estava vinculado à uma lógica moral. Ou melhor, não estava vinculado ao modelo moderno ocidental de moral que é estruturado a partir da oposição entre Bem e Mal. O modelo moralizante do herói clássico era sustentado pela oposição entre Ordem e Caos, em que a racionalização e capacidade de organização humana deveriam sobrepujar os instintos e a aleatoriedade da natureza. Se o projeto de desenvolvimento da sociedade helena era a ordenação e intelectualização da natureza humana e do mundo ao seu redor, é compreensível que seu indivíduo paradigma, o herói, seja justamente aquele que possui papel de agente civilizador sobre o estado selvagem natural do mundo. Se o herói é a representação máxima do potencial civilizador humano, os monstros formados por composições de diferentes bestas existentes que combatiam eram uma representação intensificada do potencial caótico e reprovável que a sociedade clássica via na natureza não domesticada e que lhe causava o desconforto de lembrar da porção que estava sempre à mercê dos comportamentos instintivos e descontroles emocionais no comportamento humano que este lutava para conter. Deparar-se com o “selvagem”, o não domado e racionalizado, presente no mundo natural era ter de rememorar que o humano também era uma criatura caótica e, portanto, falha. Entretanto o herói, por possuir as vantagens competitivas que o permitiam desempenhar tarefas não possíveis para homens ordinários, também era um indivíduo que aceitava parte das sua natureza caótica e instintiva e a usava contra as criaturas selvagens e forças naturais como instrumento de opô-las em condições similares para civilizá-las. Quase todos os heróis clássicos, em algum momento de sua narrativa mítica, têm de enfrentar e superar forças naturais com efeitos que promovem desordem, como Herakles que, em seus Doze Trabalhos, tem de realizar tarefas desde a enfrentar bestas, como a limpar estábulos.

O modelo de heroísmo clássico vigente no Ocidente sofre uma ruptura com o surgimento da cultura cristã. Dentro do discurso moralizante do cristianismo, a capacidade de superar adversidades e de sobrepujar os agentes opositores com base no uso apenas da força não dava mais conta de representar o modelo ideal de indivíduo digno de ser reverenciado e de servir de modelo para os demais. Seriam necessárias também a posse das Virtudes Cooperativas[2], os atributos que permitem ao indivíduo trazer melhorias à condição de seus semelhantes e de sua sociedade, a capacidade de agir de maneira justa, honesta e caridosa. Dentro do discurso filosófico e moral cristão em que a violência, o desejo pessoal e a satisfação das necessidades materiais são valores reprováveis, o herói que persevera pelas habilidades físicas não é mais o exemplo a ser seguido. O semideus que possui habilidades inatas e as usa para sua glória pessoal perde lugar para um novo modelo de indivíduo paradigma que triunfa através de sua fé e agindo como instrumento para a obra justa e inquestionável do deus cristão: o santo. O herói cristão, identificado pelas virtudes cooperativas, também pode manifestar as virtudes competitivas, mas quando o faz não é por possuí-las por si próprio, mas sim por ser o meio pelo qual o deus cristão intervém no mundo material. É dentro dessa lógica que podemos entender a interpretação da teoria do Direito Divino que legitima a ordália e o julgamento por combate na sociedade da Alta Idade Média.

Mas então como é possível haver uma tradição de heróis guerreiros dentro da cultura cristã? Primeiro porque a classe dominante dessa sociedade era majoritariamente composta por uma aristocracia guerreira. Mas, se analisarmos as narrativas míticas registradas no século XVII a partir dos personagens históricos Rolando e Rodrigo Díaz de Vivar — conhecido como El Cid — (c. 1048-1099) e do Matéria de Bretanha, que definiram o modelo de cavaleiro heroico da Idade Média, encontraremos mais um atributo que não estava presente nos heróis clássicos. No momento clímax de A Canção de Rolando, o protagonista e seus aliados são emboscados e ficam para trás para proteger a grupo principal liderado por Carlos Magno que não sabe do ataque. Os cavaleiros francos realizam proezas de combate incríveis contra uma força inimiga muito superior em números demonstrando possuírem as virtudes competitivas, mas que a detém como consequência de serem indivíduos moralmente corretos seguidores da fé e do deus cristão e sendo tais atributos manifestações deste deus que age através deles, o que tornam tais habilidades inacessíveis aos adversários pagãos. Entretanto os paladinos vão sendo derrotados um a um, todos após realizarem grandes feitos e abrindo mão da vida de bom grado para proteger seu rei e sua fé. Rolando se nega a tocar seu olifante, que poderia alertar e convocar as tropas principais à frente na Passagem de Roncesvalles, até o último momento para que a desgraça da batalha não recaia sobre Carlos Magno e seus aliados. Quando todos os demais francos já pereceram restando apenas Rolando já consciente da própria morte, o herói sopra seu olifante atraindo os inimigos restantes em sua direção, mas também alertando o rei da emboscada e convocando os reforços que agora teriam de encarar uma tropa inimiga consideravelmente enfraquecida pela sua resistência. Rolando ainda tenta destruir Durendal para que não caia nas mãos dos inimigos não seguidores da fé cristã e, ao perceber que a espada concedia por Deus não poderia ser destruída, morre protegendo e escondendo Durendal e o olifante com seu próprio corpo. Apesar de passar pela hýbris ao arrogantemente acreditar que poderia derrotar os inimigos sozinho, Rolando tem sua anábasis ao emular a conduta dos santos, que por sua vez reproduziam a do principal heróis da sociedade medieval — Jesus —, ao incorporar o martírio — a posição de aceitar e tornar-se um espectador do próprio sofrimento e morte defendendo sua fé e sua comunidade. A apothéosis de Rolando difere da de Herakles, que supera sua própria humanidade e se torna um deus, mas sim tornando-se mais parecido com Jesus, uma vez que o sujeito cristão não pode tornar-se um igual ao seu deus, mas pode tornar-se um instrumento dele e, assim, sua extensão. Dessa forma, Rolando estabelece um novo atributo para o herói, que também é uma expectativa em relação à essa categoria: a condição de se sacrificar pelo seu objetivo, pelo seu ideal ou sua comunidade.

A hýbris e o martírio tornarem-se características definidoras das releituras de Rolando, bem como parte integrante da tradição heroica após sua narrativa. Em Orlando Enamorado as ação do personagem acabam sendo definidas pelo amor que sente por Angélica e que, ameaçado pelo triangulo amoroso central da trama, torna-se uma obsessão que o conduz a agir além da racionalidade. Em Orlando furioso, quando perceba que Angélica não só não o ama, como nunca irá amar, a obsessão transforma-se em ódio e loucura, fazendo com o personagem perca o juízo de modo tamanho que Orlando perde completamente as virtudes competitivas e cooperativas, e a apenas outro herói ainda capaz de acessar a racionalidade, Astolfo, consegue ordenar e civilizar o protagonista ao percorrer por ele seu trajeto de anábasis. O ponto de vista barroco de Ariosto apresenta, justamente, o amor como um estado de hýbris por excelência que leva invariavelmente à loucura e à perda da fé, que são, respectivamente, as ruínas do herói clássico e do herói cristão.

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Gustave Doré (1832-1883), Orlando furioso

O poema de Browning reflete a ânsia de glória do Rolando da canção original e vincula seu protagonista à hýbris e ao autossacrifício. Como o cavaleiro franco, esse Rolando inicia uma jornada em busca de vitória e sucesso militar que só pode alcançar ao cumprir sua missão — o que na Idade Média idealizada corresponderia a ser fiel e defender os interesses de seu suserano —, mas esta é uma missão vazia, que só leva a mais uma missão e a mais outra. À busca segue-se sempre outra busca que, ao passar do tempo, acaba destruindo as ilusões românticas que o próprio cavaleiro tem da busca, e atinge seu auge de desilusão quando o cavaleiro morre, como todos os outros cavaleiros, sem ter alcançado nenhuma realização além de buscar pela realização. Ou seja, Roland de Browning é um herói obcecado pelo seu objetivo ao ponto de esquecer a finalidade de seus atos e martirizar-se e aos seus aliados pela satisfação de se aproximar deste fim sem finalidade.

Já o Boromir de Tolkien é mostrado como o maior cavaleiro de sua terra, Gondor, e possuidor das virtudes competitivas e cooperativas, mas também como um homem ansioso por resolver o conflito e encerrar a guerra que afligi sua sociedade. Aos poucos, desesperado por saciar essa necessidade de trazer paz para seu povo, passa por uma katábasis que o leva à hýbris diante da possibilidade de usar O Anel como arma contra seu inimigo. Mas também tem sua anábasis ao perceber sua queda e tornar-se um mártir protegendo seus aliados e, como o Rolando da narrativa original, perecer lutando sozinho contendo os avanços de uma força inimiga impossível de ser parada. A alegoria máxima da anábasis de Boromir está ao, durante sua batalha derradeira em que comete grandes feitos de bravura e também perece, soprar seu olifante. Ao tocar sua corneta de marfim, remete e reproduz o ato de Rolando, que significa reconhecer os erros cometidos e invocar seu legítimo rei. Ao soprar a corneta, Boromir abandona seus excessos frutos da arrogância e deixa de negar Aragorn como seu legítimo suserano, mas também invoca todos os inimigos para si aceitando a própria morte e sabendo que ela significa uma oportunidade de sobrevivência para seus aliados. Na anábasis de Boromir, ele se aceita como membro de sua comunidade — a Sociedade do Anel — ao ponto de acredita que vale a pena se martirizar por ela.

Na versão de Bottaro, o autor se aproveita do personagem Donald Duck, tradicionalmente representado com um comportamento de fácil irritação, e o coloca no papel de Orlando que, diante de uma série de frustrações, é levado à um estado de fúria e descontrole que o conduz a ação que causam malefícios a todos aqueles à sua volta.

O Roland de King é um personagem dominado pela obsessão, como o de Boiardo e o de Browning. A katábasis do personagem decorre de ter transformado a finalidade de sua vida em realizar o objetivo de chegar à Torre Negra, independente da finalidade prática de sua chegada lá e dispondo-se a martirizar a si e a seus companheiros para atingir seu objetivo, e sua hýbris manifesta-se ao ficar eternamente preso no percorrer desta jornada de busca. O protagonista de King parece não manifestar de maneiras extremas sua obsessão, mas ela está presente de forma enraizada e sutil em todas as suas ações. Talvez, por não passar por um momento de loucura ou fúria exacerbadas, o Roland de King consegue disfarçar e evitar de confrontar sua própria katábasis, que o impede de conseguir superá-la. Mas, apesar de não ter atingido sua reascensão, ao obter o olifante Roland adquiri o potencial de se redimir, de soprar a corneta de marfim admitindo a necessidade de convocar seus companheiros para perto de si e romper o ciclo. A vitória de dessa versão de Roland se dá ao conquistar a esperança de superação da hýbris.

Continuidades do Mito

O mito de Rolando teve muitas outras releituras, visitações e efeitos na cultura ocidental. No território espanhol existem várias lendas locais com inúmeras variações, como as sobre suas façanhas como guerreiro, o suposto paradeiro de seu corpo e o destino de Durendal após suas morte, versões que o representam como um guerreiro gigante e imbatível. Existe ainda a crença popular de que a chamada Brecha de Rolando, uma enorme falha de cem metros de altura e quarenta metros de extensão nas cadeias montanhosa dos Montes Pirineus, foi aberta com um golpe de Rolando ao tentar sem sucesso destruir Durendal pra que não caísse nas mãos dos inimigos.

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A Brecha de Rolando, nos Montes Pireneus

Também houveram pretensas continuações para Orlando furioso escritas por diferentes autores espanhóis, como La Primeira parte de la Angélica — também conhecida como Las lágrimas de Angélica — (1586) de Luis Barahona de Soto (1548-1595) e La Hermosura de Angélica (1602) de Félix Lope de Vega y Carpio (1562-1635). Orlando furioso é citado ao longo de Don Quixote (1605-1615) de Miguel de Cervantes  Saavedra (1547-1616), do qual o autor tirou alguma inspiração para fazer seu próprio romance de cavalaria com toques de absurdo, como também o triângulo amoroso entre Orlando, Angélica e Rinaldo foi uma das fontes de inspiração para a comédia Muito Barulho por Nada (Much Ado About Nothing, 1623) de Shakespeare.

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Frank Cassenti (1945-), La Chanson de Roland, 1978, pôster do filme

Orlando furioso ainda inspirou adaptações para as óperas Orlando Paladino — realizada por Joseph Haydn (1732-1809) —, Orlando furioso — de Antonio Vivaldi (1678-1741) — e Alcina, Ariodante e Orlando — de Georg Friedrich Händel (1685-1759). No território alemão, a figura de Rolando tornou-se um símbolo para a liberdade, e estátuas suas foram construídas em burgos que lutavam por independência dos Senhores Feudais locais. Motivados por essa simbologia, imigrantes alemães vindos para o Brasil batizaram a cidade no estado do Paraná de Rolândia, tendo o cavaleiro franco em seu brasão.

Em 2007 foi publicada originalmente A Liga Extraordinária: Dossiê Negro (The League of Extraordinary Gentlemen: Black Dossier), parte da série de histórias em quadrinhos de Alan Moore (1953-) e Kevin O’Neill (1953-) em que se apropriam de vários personagens da literatura fantástica e os colocam vivendo em um mesmo universo diegético. Em Dossiê Negro, a obra simula um dossiê elaborado na década de 1950 pelo governo do Grande Irmão, da obra 1984 (1949) de George Orwell (1903-1950), sobre a equipe de agentes especiais mantidas pelo governo inglês desde o século XVII. Uma das narrativas da obra se detém na vida de Orlando, em que mistura o Orlando, construído desde a versão de Turold à de Ariosto, com o personagem homônimo de Orlando: A Biography (1928) de Virginia Woolf (1882-1941) que narra a história de um cavaleiro inglês da corte de Elizabeth I (1533-1603) que um dia acorda mulher e se descobre imortal. Na versão de Moore e O’Neill, os dois Orlando são o mesmo personagem, cuja vida é narrada desde seu nascimento, na Hélade da Era de Bronze, até a Segunda Guerra Mundial interagindo com vários personagens históricos e literários e passando por muitas das grandes batalhas da história ocidental. Também há a história em quadrinhos Roland: Days of Wrath (1999), de Shane L. Amaya, Fábio Moon (1976-) e Gabriel Bá (1976-), reimaginando a narrativa em um cenário medieval fantástico.

 

Os muitos nomes que Hruodland — Hrōþiland, Roland, Roldán, Roldão, Rolando, Orlando, e outros — recebeu em tantas diferentes épocas e lugares só confirma o impacto que teve na cultura ocidental e humana, garantindo não só que seu mito continue vivo hoje a partir de inúmeras reapresentações e releituras como definiu o modo como entendemos e narramos as histórias sobre heroísmo ainda hoje.

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Idris Elba como Roland Deschain em A Torre Negra, 2017

 

[1] GIL, Luis. “Presentación”. In: BAUZÁ, 1998, p. IX.
[2] GIL, Luis. “Presentación”. In: BAUZÁ, 1998, p. IX-X.

 

Referências

ARIOSTO, Ludovico. Orlando furioso.
Texto original disponível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/3747
Tradução para o inglês disponível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/615

BAUZÁ, Hugo Francisco. El Mito del Héroe: morfología y semántica de la figura heroica. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica de Argentina, 1998.

BOIARDO, Matteo Maria. Orlando Enamorado.

BORGES, Maria do Carmo Faustino. O Maravilhoso em A Canção de Rolando. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá, para obtenção do título de Mestre em Letras na Área de Concentração Literatura e Historicidade. Maringá: 2011.
Disponível em: http://nou-rau.uem.br/nou-rau/document/?code=vtls000186684

BROWNING, Robert. Childe Roland à Torre Negra chegou. MORAIS, Fabiano [tradução]. Rio de Janeiro: Objetiva.

Clássicos da Literatura Disney Vol. 10: cruzadas. São Paulo: Editora Abril, julho de 2010.

KING, Stephen. A Torre Negra Vol. I: o pistoleiro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

KING, Stephen. A Torre Negra Vol. II: a escolha dos três. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

KING, Stephen. A Torre Negra Vol. III: as terras devastadas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

KING, Stephen. A Torre Negra Vol. IV: mago e vidro. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

KING, Stephen. A Torre Negra Vol. V: lobos de Calla. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

KING, Stephen. A Torre Negra Vol. VI: canção de Susannah. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006.

KING, Stephen. A Torre Negra Vol. VII: a torre negra. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

KING, Stephen. Uma História de A Torre Negra: o vento pela fechadura. Rio de Janeiro: Suma das Letras, 2013.

MOORE, Alan [roteiro]; O’NEILL, Kevin [ilustração]. A Liga Extraordinária: dossiê negro – edição de luxo. São Paulo: Devir, novembro de 2016.

TOLKIEN, John Ronald Reuel. O Senhor dos Anéis Vol. I: a sociedade do anel. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

TOLKIEN, John Ronald Reuel. O Senhor dos Anéis Vol. II: as duas torres. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

TOLKIEN, John Ronald Reuel. O Senhor dos Anéis Vol. III: o retorno do rei. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

TUROLD. A Canção de Rolando. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
Tradução para o inglês disponível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/391

 

Para citar este artigo:
COSTA, Rafael Machado. Obsessão e Martírio nas Canções de Rolando: ou como a morte de um governador francês definiu a maneira como contamos histórias de heróis até hoje. In: Ilha Kaijuu. 10 de novembro de 2017. Disponível em: https://ilhakaijuu.com/2017/08/27/o-discurso-politico-nos-quadrinhos-mainstream-estadunidenses-capitao-america-versus-homem-de-ferro/

2 comentários em “Obsessão e Martírio nas Canções de Rolando: ou como a morte de um governador francês definiu a maneira como contamos histórias de heróis até hoje

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