Em seus textos, História Cultural do Brinquedo e Brinquedo e Brincadeira: observações sobre uma obra monumental, Walter Benjamin (1892-1940) comenta a obra de Karl Gröber (1885-1945) e faz algumas observações sobre o brinquedo como objeto artesanal, como objeto produzido pela indústria cultural e sua história. Segundo Benjamin, foi na Alemanha que surgiu a tradição na produção de brinquedos na Europa. A princípio, até o século XIX, esses brinquedos eram fabricados como produção secundária por artesãos especializados em determinados tipos de atividades ou matérias primas. O soldado de chumbo era produzido por um artesão de metais, o cavalo de madeira, por um marceneiro, e assim com outras peças de função similar. Com a Reforma Protestante e a diminuição na procura por objetos artísticos representacionais com funções religiosas, parte dos artistas que até então se dedicaram a atuar nesta área tiveram de procurar novos escoamentos para suas produções e acabaram tornando-se artesãos de brinquedos.
Entretanto sou levado a considerar que talvez o termo mais adequado seja “artistas de brinquedos”, pois passaram a empregar toda a técnica e tradição de seu trabalho artístico nessa produção. Foi nesse contexto que acabaram surgindo as grandes tradições na produção de brinquedos e miniaturas — se é que é possível ou necessário esta separação entre as duas categorias — na Alemanha. As miniaturas de Nuremberg e as bonecas de madeira de Sonnenberg citados por Benjamin são alguns desses exemplos. Nessas tradições de produção de brinquedos, que se tornaram cada vez mais especializados, há uma busca na feitura do artista pela reprodução de detalhes em suas peças, em criar microambientes elaborados, detalhistas, que reproduzam elementos do mundo real, mas em escala menor e com certo tom de fantasia. Peças detalhadas e frágeis que aparentam ter como função mais provocar uma experiência estética naqueles que as contemplam ou manuseiam, do que propriamente para o desgaste mecânico das tensões provocadas por uma brincadeira infantil. As delicadas e detalhadas grandes tropas de chumbo com suas figuras militares distintas, nas quais eram possíveis identificar a mimese de cargos e funções específicas, constituíam-se peças mais adequadas para serem apreciadas por um conhecedor do que para serem jogadas umas contra as outras, contra o solo e ao ar em um campo de batalha dirigido por uma criança para finalmente acabarem mastigados ou no fundo de um baú.




Benjamim relata ainda que, a partir do século XIX, com as indústrias especializadas, os brinquedos acabaram adquirindo formas maiores, menos detalhadas, talvez mais simplistas — eu diria mais icônicas. Chega a relatar esse fenômeno como sendo uma possível apropriação e vulgarização das tradições mais refinadas da elite quando apropriadas pela indústria cultural e cultura popular. Independente do motivo que produz essa mudança na produção e no surgimento dessa nova estética para os brinquedos, leva-nos, a partir dos argumentos do próprio Benjamin, a entender que este novo modelo é de fato mais eficiente para que o brinquedo cumpra sua função lúdica em relação à criança. Benjamin fala de um modelo anterior de brinquedo, que possivelmente veio da apropriação de objetos com funções rituais, como o chocalho, a bola e o arco, e em certo momento afirma ser um erro acreditar que “[…] o conteúdo ideacional do brinquedo determina a brincadeira da criança, quando na realidade é o contrário que se verifica.”[1] Afirma ainda que “Pois quanto mais atraentes são os brinquedos, no sentido usual, mais se afastam dos instrumentos de brincar; quanto mais eles imitam, mais longe estão da brincadeira viva.”[2]
Sob essa última perspectiva, a natureza da brincadeira infantil tem mais a ver com o ato de mimetizar do que com o objeto mimetizante. Nas mãos de uma criança, objetos de constituições variadas podem ter suas funções reimaginadas e se tornarem funcionais de acordo com as necessidades da brincadeira. Um pedaço de madeira pode ser uma espada, um cavalo, um cajado ou uma chaminé. Quanto mais imprecisos, quanto menos detalhista, quanto mais icônicos forem os brinquedos em características formais, mais espaço ele concede à criança para que o complete segundo sua imaginação e a necessidade da atividade lúdica em questão; quanto mais simples for o brinquedo quanto sua materialidade, mais resistente será às tensões físicas desta atividade.
Logo, o brinquedo da era industrial, pós-século XIX, produzido em série, mais resistente e menos detalhado é mais um brinquedo, se levarmos em conta a suposta finalidade principal deste, e está mais perto do idealizado “brinquedo original” que se manifestava na forma do chocalho, da bola, do arco e seus assemelhados. Enquanto o brinquedo anterior a este período, feito por artesãos vindos de tradições específicas e artistas “deslocados” com pretensões — talvez necessidades — estéticas esteja muito mais perto do objeto de arte do que do brinquedo — considerando as funções convencionadas a estas duas categorias — só não sendo considerado inequivocamente uma produção artística por não se tratar do círculo de objetos definidos como arte pelos agentes legitimadores naquele momento.
Eis que esse contexto nos leva a outro cenário que será apresentado agora. A partir da década de 2000, aproximadamente, começou a ganhar força, principalmente nos mercados/circuitos que convencionalmente são chamados de “cultura pop” — apesar de eu ter ressalvas ao termo — nos Japão e EUA, uma indústria de um tipo bem específico de objeto. Brinquedos — ou miniaturas, se, novamente, for possível tal distinção — produzidas com um extremo rigor em detalhes. Essas peças — que atendem por nomes como Garage Kits, Action Figures e outros — tendem a mimetizar, não exatamente elementos do mundo real, mas mundos fictícios em uma verossimilhança naturalista. Personagens, ambientes e equipamentos de filmes, livros ou outras mídias produzidos em escala reduzida com detalhes pormenorizados, simulando rosto de atores, detalhes de objetos, linguagem corporal, misturando elementos tipicamente característicos dos brinquedos com características do campo da escultura em um meio termo entre ambos de difícil definição pelos critérios até então utilizados para diferenciação. Muitos destes produtos culturais são conjuntos de itens — bonecos, cenários, maquetes — com intuito de que seu possuidor possa mimetizar rigorosamente uma cena ou passagem de uma narrativa ficcional ou histórica, montar um pequeno altar doméstico em que um ator de sucesso em escala menor interpreta seu personagem favorito em uma cena específica de um filme em uma aliterada mini mimese em mise en abyme.
A partir de então toda uma indústria especializada tem crescido dedicada à produção de tais peças. O que nos leva a observar algumas questões. Primeiro, que ela não tem como destinação principalmente um público infantil, apesar de que ele também possa estar contido entre seus apreciadores, mas sim um grupo de adquirentes adultos, portanto, não presumidamente praticantes de “brincadeiras”. Segundo, que a existência dessa produção de forma alguma rivalizou com a produção de brinquedos não tão detalhados e feitos de uma material mais resistente que ocupam a função mais próxima das definições de Benjamin a respeito do que eu chamei de “brinquedo original” mais condizente com a função a ser executada por um item lúdico infantil, ou seja, não ocupam o mesmo nicho dos brinquedos icônicos. Mas se não dão conta de cumprir com a função do brinquedo infantil, o que seriam esses objetos? Qual o papel de uma reprodução tridimensional miniaturizada realista e detalhada de um personagem confeccionada para a apreciação de um adulto?
Fazendo confrontações entre essa produção e outras anteriores, somos levados a questionar a respeito da natureza do brinquedo e da arte. A geração de brinquedos apresentada por Benjamin anterior à produção industrial especializada do século XIX tinha em sua base uma tradição de artistas deslocados, e suas pretensões tinham como fundamento muito mais a necessidade de realização estética do autor e sua apreciação como objeto estético, do que uma função prática lúdica ou didática em relação à criança. Basicamente, era uma produção de brinquedos para adultos que só não foi então considerada arte por estar fora da lista de objetos consagrados como arte.
Mas o que dizer da atual produção de “brinquedos para adultos”? O que separaria essa experiência catártica de reproduzir uma cena diegética/fantasiosa/histórica de uma narrativa mítica contemporânea para apreciação estética de um colecionador — que por sua vez usará dos itens em seu poder para demarcar uma distinção social entre ele próprio e outros apreciadores a quem exibe sua coleção — de um colecionador de pinturas neoclassicistas? Grandes empresas especializadas, como a Bandai, Figma, Play Arts Kai ou MacFarlane Toys, têm como procedimento convidar autores já renomados na área ou conhecidos por seus trabalhos como artistas visuais para produzirem esculturas de acordo com as técnicas tradicionais, mas usando modelos de personagens de narrativas atuais. Nessa confecção, os critérios utilizados para sua valorização também são tradicionais, como realismo, mimetismo, escorço e proporção. Quando prontas, essas peças são exibidas em grandes eventos. Existem ainda salões periódicos, como o aclamado Wonder Festival, que acontece semestralmente em Tōkyō, e a tradicional exposição American International Toy Fair, que ocorre anualmente em Nova York, que conta não só com grandes empresas, mas também com a participação de artistas do segmento não ligados a grandes produtores, que também produzem e exibem sob critérios similares, mas em menor escala de produção. Uma vez acabadas e selecionadas, essas peças escultóricas únicas são utilizadas como molde para a reprodução industrial em larga escala que é vendia aos consumidores finais. Não raramente são lançadas peças diferenciadas ou com variações em número limitado de réplicas, tornando-as raras. Mesmo sendo reproduzidas em grande escala, devido a um grande público de apreciadores e aos recortes temporais em que são fabricadas essas esculturas miniaturizadas, existe todo um mercado paralelo destes brinquedos para adultos que se rege pelas regras de qualquer mercado capitalista, em que atributos convencionadas pelos apreciadores, sua raridade e demanda definem os preços, que podem chegar a valores consideravelmente altos.


Essas miniaturas detalhadas e dioramas, esses brinquedos para adultos, se analisarmos em relação ao material de que são constituídos, não passam de plástico, tinta, metal, tecido e cerâmica. Nada de matérias primas nobres na sua produção. Mas ainda sim são objetos de cobiça, ostentação, diferenciação e constituem um próprio nicho de mercado. O que leva a constatação de que sua valoração se dá através de um valor simbólico contido ou projetado sobre eles. Seus critérios para apreciação e valoração são quase que os mesmos da produção cultural legitimada dentro do circuito da arte, são confeccionados através de técnicas reconhecidas por este circuito e às vezes com participação de indivíduos que fazem parte dele. Há nessa produção uma retomada de uma função presente naquela geração de brinquedos pré-industrial com pretensões artísticas, mas agora em um circuito muito mais complexo. Ainda há um novo fator, talvez a maior diferença desse período anterior e da arte legitimada que é sua reprodução industrial em larga ou média escala, entretanto, como são fabricadas e distribuídas apenas durante um período de tempo e permanecem como objetos de desejo por vários anos após terem sido esgotadas nos canais de distribuição oficiais e estão diante de grande público espalhado ao redor de todo o globo, ainda mantém a aura banjaminiana, pois são filhos de uma reprodutibilidade limitada e esgotável. Mas se considerarmos que sendo o trabalho escultórico do artista muitas vezes realizado sobre material descartável que servirá de molde para a escultura final em bronze ou outro metal nobre e que uma matriz de gravura pode reproduzir um número determinado de impressões sem que, em ambos os casos, seja colocado em xeque o valor artístico destas obras, não será o fato de que a peça feita em cerâmica ou resina por um escultor servir como molde para a reprodução final em plástico, metal ou outro material em um número grande, mas limitado, de reproduções que ameaçará qualquer caráter estético ou artístico presente nos brinquedos para adultos.
Se o caráter artístico de uma produção se dá na experiência estética proporcionada por ela a um sujeito, não podemos negar a existência do status artístico em um brinquedo, ainda mais um brinquedo que não foi projetado para brincar, mas sim para a apreciação estética segundo as mesmas regras aplicadas à arte escultórica, além de algumas outras. Se para a definição de uma produção artística é necessário um circuito de exibição, legitimação e mercado, também essa produção de “brinquedos” que não são exatamente brinquedos está contemplada. Assim, termo de conclusão desta análise é que existe uma produção, que chamei aqui de “brinquedos para adultos”, dentro da indústria cultural que se sustenta e legitima através das mesmas regras da arte, mas que não está inserida em seu circuito, mas em um circuito próprio, paralelo e que segue os mesmo critérios. Constitui-se de mais um dos microssistemas excluídos do circuito artístico tradicional apesar de seu objeto ser irmão daqueles lá integrados.
[1] História Cultural do Brinquedo In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas – Volume 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 247.
[2] História Cultural do Brinquedo In: BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas – Volume 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p 247.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas – Volume 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
DEWEY, John. Arte como Experiência. São Paulo: Martins Fontes.
Para citar este artigo:
COSTA, Rafael Machado. Os Novos Brinquedos para Adultos. In: Ilha Kaijuu. 21 de agosto de 2017. Disponível em: https://ilhakaijuu.com/2017/08/21/os-novos-brinquedos-para-adultos/